terça-feira, 26 de maio de 2020

RECONTO DA HISTÓRIA MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA - Natan Guilherme do Nascimento Rodrigues


CADA UM COM SEU LAÇO


Caro leitor, vou contar
A história da Menina Bonita
Morava vizinha ao coelho
Ela usava laço de fita
Que prendia seu cabelo
Ela pulava corda feito cabrita.

Ceto dia a filha pretinha
Do coelho questionou
Por que somos tão diferentes?
Logo o coelho argumentou
Contou sobre uma menina
E essa história contou.

O coelho começou
E seu filho reclamão
Foi logo dizendo
História interminável, ah não!
O coelho ao ver sua vizinha
Chamava-lhe atenção.

Sua cor pretinha
Menina de educação
De olhos escuros como a noite
Usava um laço de fita grandão
Prendendo seus cabelos
Negros como a escuridão.

Ao conversar com a menina
O coelho imaginava
O porquê dela ser tão pretinha
E eu tão branquinho, pensava
Menina bonita do laço de fita
Assim ele sempre falava.

Qual é o teu segredo
Para ser tão pretinha?
Ela respondeu que caiu
Em um balde que tinha
Tinta preta de montão
Que a deixou bem bonitinha.

O coelho esperto
A tinta foi testar
Pintou o corpo de preto
E a chuva veio lavar
Escorrendo toda a tinta
Voltando seu corpo a branquear

Insatisfeito o coelho
Voltou a perguntar
Menina bonita do laço de fita
O que faço para preto eu ficar?
A menina respondeu
Café é o que deve tomar.

O coelho bebeu tanto café
Que passou a noite a mijar
Era a segunda tentativa
De preto ele ficar
Continuava branquinho
Cor de neve a brilhar.

O coelho insistiu em perguntar
Menina bonita do laço de fita
Qual o teu segredo?
Ela responde e não evita
Foram jabuticabas que comi
O coelho corre, quase levita.

Comeu muitas jabuticabas
E nada aconteceu
Na quarta tentativa
Na janela o coelho apareceu
Repetiu a pergunta para menina
Que logo respondeu.

Deve ser a feijoada
Que minha mãe está a fazer
A mãe não concordou
E começou a dizer
Artes de uma avó preta
Veio a esclarecer.

Nesse momento o coelho
Começou a entender
A questão é genética
O filho há de parecer
Com seus pais e avós
Mesmo sem os conhecer.

Para concluir a história
O coelho afirmou
Se eu queria uma filha pretinha
Uma esposa pretinha encontrou
Ao conhecer sua mãe
O amor me nocauteou.

Casou com a coelha pretinha
Teve um filho reclamão
Uma filha preta e bonitinha
Hoje felizão
Com seus filhos e esposa
Todos felizes de montão.

A Menina Bonita do Laço de Fita
É madrinha da filha do coelho
E ao ir visitá-la
Uma amiga mete o bedelho
E pergunta o que faz pra ser pretinha
Da mãe da madrinha veio o conselho.

Espero que tenham gostado
Esse foi o meu reconto
Segui o ditado popular
Quem conta um conto
Por sutil que ele seja
Aumenta um ponto.

domingo, 24 de maio de 2020

Livro Eugênia e os robôs de Janaína Tokitaka




TOKITAKA, Janaína. Eugênia e os robôs. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores,2014.

CAPÍTULO 1
           
Uma coisa é certa: existem tantos tipos de crianças no mundo quanto há diferentes espécies aquáticas no oceano. Eu explico: assim como não é possível encontrar duas sardinhas exatamente iguais, por exemplo, certamente não há um filhote de gente como o outro.
            Algumas crianças gostam de futebol, quadrinhos de super-herói e bolo de chocolate. Outras pessoas preferem livros de aventura, colecionar pedrinhas redondas e adoram balas de goma em forma de aranha. Conheci uma vez uma menina que achava muito divertido ir no dentista e posso garantir que ela não estava mentindo!
            Eugênia não era apenas a única como qualquer outra pessoa no mundo: era drasticamente, irremediavelmente, completamente diferente de que qualquer outra criança.
            O que estou tentando dizer é que Eugênia jamais seria amiga da menina do dentista, por exemplo, que decerto é uma das figuras mais esquisitas que já conheci. Também nunca se sentaria na mesma mesa do menino que acordava cedo para estudar matemática, ainda gostando muito dessa matéria.
            Eugênia poderia ser considerada um objeto de estudo interessantíssimo   por muitos cientistas se não fosse uma menina de onze anos bastante confusa, em conflito com a vida e que simplesmente não conseguia fazer amigos.
            O problema dela era bem complicado: seria como se pedissem que você pilotasse um submarino. Ou que fizesse, do zero, sorvete napolitano. Ou que lambesse seu próprio cotovelo. Agora imagine que o resto do mundo lambesse o cotovelo pilotando um submarino enquanto toma um sorvete de napolitano feito pelas próprias mãos, assim, facinho, como quem passeia no parque. Aposto que você ia ficar achando que o mundo estava de brincadeira. Mas era mais ou menos assim que Eugênia se sentia.
            Ninguém, entretanto, poderia acusa-la de nunca ter tentado: ela simplesmente havia esgotado todas as maneiras de começar um papinho normal no recreio da escola, na fila é que todos os diálogos eram mais ou menos assim quando alguém puxava assunto
            -Oi Eugênia, tudo bem?
            -Não.
            Era a mais absoluta verdade. Como poderia estar TUDO bom? Todas as coisas do mundo estavam funcionando perfeitamente? Nada mais ou menos? Nada nem um pouquinho ruim? A pergunta era fácil, a resposta certa devia ser não, certo?
Errado.
A maioria das pessoas dava de ombros, pensando que aquela menina era meio estranha mesmo. Uns realmente se ofendiam: “Eugênia é grosseira, nariz em pé, louca, todas as anteriores.”
Ela observava com muita atenção e tentava, sem sucesso, fazer o que as pessoas pareciam nascer sabendo. Abria o maior sorrisão e sapecava um “Oi. Tudo bem?” para a menina que tinha acabado de levar um tombo daqueles que praticamente arrancava o joelho fora. A menina tinha lágrimas nos olhos e, ainda assim, respondeu: “Tudo”. Para Eugênia, era o mais intrigante dos comportamentos. O tipo de coisa que deixava paralisada. Como alguém conseguia interpretar aquela multidão de sinais contraditórios? O pânico tomava conta de Eugênia, e ele saía correndo, em disparada, até suas pernas começarem a tremer.
Deu para perceber a gravidade da situação, certo?
Cada nova tentativa de encontrar um amigo era acompanhada de risos e zoações. A rejeição era geral. Eugênia não conseguia fazer amizade até com a professora, com a moça da cantina, com os colegas de classe ou com qualquer pessoa do planeta, então, passou a evitar todos categoricamente. Concluiu, com um suspiro, que não valia o esforço. Mas não se conformou em passar o resto de sua vida sem nenhum tipo de companhia...
Acho que eu me esqueci de mencionar uma coisa muito importante sobre Eugênia: ela era muito inteligente. Mesmo. Muito mais inteligente que Albert Einstein, Leonardo da Vinci e o cara que inventou o videogame, todos juntos. O esforço ela dispensava ao tentar fazer amigos o oposto do que ela fazia para quase todas as outras atividades mentais.
Aos onze anos, ela já havia desmontado e montado de diversas vezes todos os aparelhos eletrônicos da casa com tanta habilidade que seus pais nem perceberam a façanha, tampouco se espantaram diante da melhora na imagem da TV, da velocidade da máquina de café, que antes produzia um líquido morno bem ruinzinho e agora da de dez a zero na cafeteria chique do bairro.
Eugênia também havia lido todos os livros de mecânica e elétrica avançadas do seu pai, engenheiro, e corrigido alguns errinhos do autor com anotações em post-its coloridos. Um dia, no banho, descobriu como construir uma nave espacial enquanto ensaboava os dedos do pé, mas deixou para lá porque não conseguia pensar em uma boa razão para visitar a Lua. Até onde ela sabia, lá era deserto, meio feio e sem graça. Então, ela decidiu resolver o problema à sua maneira, mais fácil e natural. Sua única chance de “fazer amigos” seria seguir o significado da frase ao pé da letra. Afinal, as pessoas não diziam que amizade é algo que constrói?

CAPÍTULO 2           
           
Eugênia já tinha o plano perfeito traçado em sua mente: agora era uma questão de meros preparativos, e nisso, felizmente, ela era muito boa. Não seria fácil, claro, mas era completamente possível: o mais complicado seria manter segredo de seus pais.
Os pais de Eugênia, aliás, eram como o resto do mundo para ela.  Indecifráveis, com frequência faziam coisas estranhas e a deixavam ligeiramente nervosa. Tanto o pai quanto a mãe pareciam estar sempre insatisfeitos com ela, preocupavam-se com coisas bobas. Àquele ponto, Eugênia já os tinha declarado “as pessoas mais difíceis de entender do mundo inteiro” e deixado o problema registrado como sem solução.
O dia havia começado como qualquer outro. Eugênia fez a questão de que fosse assim. Você, que está lendo este texto, pode até gostar de variar seu café da manhã e comer bolacha recheada sabor doce de leite em outro dia e pão com manteiga em outro, mas , se havia uma coisa que acabava com o humor dela, era uma mudança no cardápio da primeira refeição.
Todo santo dia, Eugênia montava o mesmo sanduíche. Duas fatias idênticas de pão de forma, sem casca e sem grãos, cortadas em triângulos e recheadas de queijo molinho e peito de peru, acompanhadas de suco de laranja. Tinha de ser coado, obviamente, já que Eugênia detestava sentir aqueles gominhos “nojentos” presos entre os dentes.
Após o café da manhã, Eugênia pegou mochila, os livros e os cadernos e saiu do prédio como quem vai à escola. Deu até um sorrisinho amarelo para os pais, algo que vinha ensaiando em frente ao espelho todas as noites. Virando o quarteirão, onde costumava pegar a condução escolar, escondeu-se atrás de uma moita enorme de azaleias.
Nem dez minutos depois, ela viu o carro prateado dos pais passar à sua frente. A mãe aproveitava para retocar o batom no retrovisor e o pai cantava uma música do rádio a plenos pulmões ação. Era um sinal para entrar em ação. Voltou para casa correndo, entrou no computador. Abriu o e-mail da mãe, o qual tinha aprendido a invadir aos cinco anos, e depois um programa de edição de imagem. Copiou, com perfeição, um atestado médico dizendo que estava com... Eugênia coçou a cabeça. Amigdalite? Sarampo? Perna quebrada? Optou por gripo comum, pois havia dois colegas de classe com a doença.
Anexou o documento ao e-mail e o enviou para a diretora da escola, pedindo com firmeza que não telefonassem para confirmar o recebimento, alegando que o “aparelho se encontrava quebrado”. Parecia algo saído da boca da sua mãe: “E, se de fato fosse preciso, respondessem para aquele mesmo endereço eletrônico.” A menina sabia que a mãe olhava as mensagens uma vez por semana, se tanto. Isso lhe daria tempo suficiente para inventar uma resposta se alguém quiser saber detalhes sobre sua saúde, coisa que duvidava muito disso que pudesse acontecer, mas era bom ser prudente.
Eugênia prendeu os cabelos lisos em um rabo de cavalo alto, bem puxado, para não cair no rosto, arrumou os óculos tortos no nariz e foi à caça. Juntou, formando uma pilha monstruosa no meio da sala, todos os de tralhas eletrônicas que conseguiu encontrar. Controles remotos, relógios quebrados, baterias de aparelhos perdidos, um treco de cozinha que Eugênia nunca tinha visto ninguém usar, mas que aparentemente cortava legumes em formato de estrelinha, um par de óculos de visão noturna, um trambolho de meio quilo que parecia ser algum modelo antigo de celular e outros utensílios inúteis de casa. Um fio de suor escorria pela sua testa, e seus tênis brancos estavam completamente imundos, mas ela se sentia radiante. Era muito, muito mais do esperava. Com aquela matéria-prima, poderia fazer não apenas um, mas três amigos. O que mais poderia querer de manhã em que matou aula pela primeira vez?
Arrastou aqueles precisos materiais um por um até seu quarto. Era a única vez que o cômodo branco parecia mais ou menos com o quarto de qualquer outra criança. Havia mais objetos esparramados no chão do que empilhados na prateleira por onde de cor e tamanho. Eugênia abriu seu kit de ferramentas, a coisa que ela mais gostava de ter. Sentia orgulho daquele estojo enorme: cada peça havia sido um presente de Natal ou de aniversário. Não entendia a necessidade de ter um videogame de última geração se, pelo mesmo preço, ela poderia ter a Steel 2000, uma supersolda poderosíssima que derretia até o mais duro dos metais. O complicado era aguentar as queixas dos pais e avós, que questionavam como uma menina de onze anos poderia preferir um kit de parafusos a um kit de maquiagem com glitter. Pegou os materiais e começou a trabalhar com dedicação no que viria sair a ser seu primeiro amigo: um robô inteligente, quase humano.
Zero era uma réplica sua sob todos os aspectos. Não que não funcionasse bem, isso seria impossível para uma criadora engenhosa como Eugênia. O problema é que havia semelhanças demais entre criador e criatura. Era como se a menina se enxergasse em um espelho vivo, com todos os defeitos e as manias que mais detestava desfilando à sua frente. O robô parecia antipático, tímido e desinteressante aos seus olhos, e ela não podia culpá-lo por possuir qualquer uma dessas características. Percebendo que ficaria louca se seu único amigo fosse também sua cópia perfeita, Eugênia partiu para a construção do amigo número 2.
Aldo foi um avanço em relação a Zero. Eugênia tentou fazer uma versão melhorada de si mesma: mais inteligente, mais eficiente, mais rápida! Infelizmente, a menina se esqueceu, ao ampliar suas próprias qualidades, de diminuir o que percebia como seus defeitos. Aldo era um robô brilhante, mas tão desajeitado quanto sua criadora. Eugênia tentou puxar papo:
-Oi, Aldo.
-Olá – disse numa vozinha metalizada e esnobe. – A senhorita cometeu uma falha. Não possuo códigos de sociabilização no meu programa.
- Ih, verdade. Puxa. Não dá pra consertar.
-Já havia percebido. Por favor, me destrua. Não quero ser imperfeito.
- Ah, acho que não. Deu trabalho sabe, sabe. Vai brincar com o Zero ali, vai.
- Não possuo o código, não sei brincar.
-Tudo bem, ele também não sabe.
Os dois robôs se sentaram um do lado do outro, cada qual com um volume da colação Matemática Aplicada II. A leitura não cativou a atenção de Aldo.
Eugênia resolveu pensar diferente. Seguir uma nova receita. Colocou todas as características humanas que conhecia no seu computador e sorteou algumas. Provavelmente, foi assim que todas as pessoas foram feitas, pensou.
Era a única explicação para o quão contraditórias poderiam ser de vez em quando. Algumas características, no entanto, ela escolheu como não optativas: o robô deveria gostar de doce, fazer piadas que ela entendesse (Eugênia tinha extrema dificuldade em entender coisas que pareciam engraçadas para o resto da humanidade) e não poderia mentir para ela em hipótese alguma.
Eugênia, então, carregou o robô número 3 com seus próprios dados – suas músicas favoritas, comidas que não suportava, cores que achava bonitas, livros de que mais gostava. Como ela gostava que falassem com ela, o que espertar de todas as suas ações, quando queria conversar e quando deveria ser deixada em paz. Assim, o robô já nasceria conhecendo-a desde sempre, melhor do que qualquer pessoa no planeta.
Tremendo, suja de graxa e suando muito (três coisas que ela nunca experimentara até então), Eugênia apertou o botão vermelho que ligaria sua última e melhor invenção, batizada de Isaac.
- Você...
- Sim, está tudo bem comigo, não poderia estar melhor! Vamos jogar xadrez, fazer um bolo de chocolate e pesquisar marcas de cachorros na internet?
- Era exatamente o que eu queria fazer!
E lá se foram felizes, Isaac, e Eugênia, seguidos de longe por Zero e Aldo.

CAPÍTULO 3

Os pais de Eugênia estavam acostumados com a mania da filha de passa horas afio trancada no quarto, lendo ou navegando na internet, mas nunca como naquele fim de semana. Eles estavam aflitos porque a menina tinha descido à cozinha de manhã cedo, aberto a geladeira pegado o saco de pão, frios e alguns sucos de caixinha. E, desde então, não descera mais. Seriam risadas que estavam ouvindo por detrás da porta do quarto? O pai resolveu tentar primeiro:
- Filhinha, vamos sair? Vamos ao parque?
- Ao parque não Geraldo! -sussurrou a mãe. -Da última vez que fomos ao parque, ela ficou nervosa com a mulher do cachorro-quente, lembra? E passou mal naquele brinquedo que gira.
-Então não sei, Carolina, fala você com ela!
-Filha, vamos àquela livraria que tem a lanchonete cheia de guloseimas? Deixo você pedir duas fatias de bolo e refrigerante.
Essa era a cartada final. Bolo de chocolate e livros eram uma combinação irresistível para Eugênia. A mãe nunca tinha visto a menina recusar o programa na vida e, como vocês sabem, mães costumam pensar que conhecem os filhos como ninguém. Não era diferente com a mãe de Eugênia, mesmo ela sendo uma menina tão difícil de entender. Talvez seja verdade que as mães nos conhecem mais do que conhecemos a nós mesmos. Você por acaso se lembra de quando tinha um ano de idade? Pode apostar que sua mãe se lembra até da temperatura certa da sua mamadeira e de todos os detalhes da sua carinha de bebê.
Só que, para surpresa da mãe, Eugênia respondeu:
-Não. Hoje não quero.
Os pais de Eugênia se entreolharam, angustiados. Era a gota d’água. Se ela não havia cedido agora, sabiam que não havia mais jeito. Afastaram-se, esperando que a situação melhorasse naturalmente nos dias seguintes.
Na segunda-feira, Eugênia ainda estava vibrante com a perfeição de seu fim de semana. Zerou todos os jogos do computador com a ajuda de Zero, Aldo e Isaac, criou um programa que conseguia dizer se uma maçã estava farinhenta ou não em dois minutos e, acredite, tinha conversado sobre sua vida com Isaac por um tempão.
Ela se esqueceu por completo da monotonia da escola, do esforço sobre-humano para responder em voz alta às perguntas bobas dos educadores, das humilhações no recreio. Eugênia, ao contrário de seus colegas, adorava a aula dos professores mais bravos, aqueles que não aceitavam um pio dos alunos. Assim podia ficar sossegada, pois todos ao eu redor fariam silêncio também.
Decidiu que ignoraria qualquer pessoa que cruzasse seu caminho. Fugiria das pequenas multidões da escola, se fosse preciso. Evitaria filhas, grupinhos de meninos trocando figurinhas, meninas jogando vôlei. Para se proteger, responderia apenas a quem se dirigisse a ela com uma pergunta direta.
Agora que tinha não apenas um, mas três amigos, ela não precisava se cansar tentando criar laços com um mundo que também não se esforçava muito para compreendê-la.
Chegando à escola, logo se dirigiu à sua carteira de sempre – nem muito na frente, nem muito atrás, encostada na parede e longe da janela. Sentou-se quietinha e não reclamou sequer uma vez: nem quando a professora de História, reprovou sua atitude por não ser participativa, nem quando aquele moleque infernal, Edu, jogou bolinhas de papel e cuspe no seu cabelo durante a prova de matemática.
Eugênia sabia, no entanto, que em casa lhe esperava um amigo para o qual sequer precisaria falar o que estava a sentindo – ele, como mágica, adivinharia e faria todas as suas vontades. Ela duvidava de que qualquer uma daquelas crianças tivesse tanta sorte e repetia para si mesma que aquelas cinco horas diárias intermináveis eram rápidas se comparadas ao resto do dia que passaria conversando sobre seus assuntos preferidos com os amigos robôs.
O único momento em que o desespero tomava conta da menina era o bendito intervalo. Pelo menos na aula de educação física as instruções eram claras. Ela não conseguia seguir nenhuma delas, mas entendia a finalidade do jogo: acertar a bola mais vezes na rede, correr mais rápido do que outros, aguentar mais tempo pendurado em uma barra ... pelo menos, era um sofrimento ordenado.
Na hora do recreio, ela conseguia ver que havia regras, mas não era capaz de segui-las de modo algum. Assim, naquela manhã, decidiu o que faria em todos os recreios pelo resto da vida. Ela se trancaria no banheiro, pronto. Não incomodaria ninguém.
Ouvindo o sinal tocar, Eugênia prontamente pegou sua lancheira, seu livro de poemas japoneses e um caderninho e se enfiou numa cabine do banheiro feminino. Trancou a porta e sentou-se na tampa da privada, rezando para os vinte e cinco minutos passaram depressa.
Já estava no quinto ou sexto haicai quando ouviu passos e viu pelo vão da portinha do banheiro dois sapatos familiares se aproximando. Eugênia gelou. Ela odiava aquelas cadarços cor-de-rosa mais do que tudo na vida e podia reconhecer aquele horroroso adesivo holográfico colado na pontinha do tênis em qualquer lugar do mundo. Era Daniela, com certeza. Que menina desprezível, com suas pulseirinhas de miçangas e seu sorriso falso. Eugênia sabia que, por detrás dos cadernos com cheiro de chiclete, existia um monstro que faria qualquer conde drácula parecer um carneirinho.
-Eugênia, eu sei que você está aí.
-Ehr. Este banheiro está ocupado.
-Olha, eu achava que você era só louca e chata, mas pooor favooor, Eugênia. -Ela arrastava as palavras de um jeito entediado. - Sinceramente, eu até acho que mora em banheiro combina com você.
Eugênia suava frio a cada frase. Ouvia risadinhas maldosas por detrás da porta, vindas do grupo de meninas que sempre acompanhava Daniela.
-Mas acontece que essa é minha privada. E ninguém mais pode usá-la, muito menos você, por mais que eu prefira que gente assim, feia e esquisita, se tranque longe da minha cara para sempre. Então saia daí agora. Agora!
Eugênia estava acostumada a pensar rápido, mais havia algo no tom de voz arrogante daquela menina que realmente a intimidava. Como um bichinho assustado, sua vontade era se encolher cada vez mais naquele cubículo e não sair de lá nunca mais, e a demora só contribuiu para aumentar a fúria de Daniela, que por fim se revoltou:
-Tudo bem, aberração, você pediu.
Eugênia respirou aliviada. Será que ela tinha desistido? Não, não seria tão fácil. Não haviam se passado nem cinco minutos quando um par diferente de sapatos apareceu no campo de visão de Eugênia. Eram quadrados e de verniz vermelho. Indiscutivelmente, os sapatos de bedel Cristina.
-Eugênia, saia daí, vamos. A Daniela está preocupada com você. Isso não é lugar de menina ficar durante o recreio. Vai brincar lá fora.
A pressão só estava aumentando, e Eugênia não conseguia dizer palavra alguma. Ela colocou a cabeça entre os joelhos e abraçou as pernas, com força, sem mover um músculo sequer.
Um amontoado de crianças curiosas estava se acotovelando no banheiro feminino. Crianças de outros anos e até funcionários tentavam descobrir o que estava acontecendo. Começaram um coro: “A-bre, a-bre, a-bre, a-bre!”
Minutos depois, a diretora Gisela foi informada sobre a confusão no banheiro das meninas. Resolveu, então, checar pessoalmente o que se passava. Pequena e redonda sempre vestida com conjuntinhos lilases ou cor-de-rosa, ela caminhou pelos corredores cumprimentando um e outro com sua voz fina como uma flautinha de plástico. Sabia que, se quisesse que a paz voltasse a reinar no colégio naquele dia, a menina teria de sair logo da cabine do banheiro. Simples.
A diretora se lembrava vagamente de Eugênia, uma aluna que costumava ficar lendo em qualquer canto do pátio e que, para Gisela, tinha uma cara de ratinho molhado. Era pequena para a idade e meio magricela. Muito inteligente e tímida, mas não era do tipo de criar caso com ninguém. Tirá-la do banheiro ia ser fácil, de preferência rápido. Assim ela voltaria a tempo de se encontrar com o professor de ciências com quem tinha marcado uma reunião.
Entrou no banheiro com cuidado, abrindo caminho com as mãos por entre aquela multidão de crianças gritando, urrando e batendo os pés, até chegar diante da porta trancada. Elevou a voz esganiçada:
-Crianças, quem não sair daqui agora vai levar suspensão. Vou contar até três!
Num segundo, o banheiro parecia um deserto.
-Eugênia, a advertência vale para você também. Quer levar uma suspensão?
A menina queria muito era estar em outro planeta. Não ouvia mais nada, não respondia a mais nada. Ela só desejava que o mundo ficasse quieto e imóvel. Mesmo sabendo que as coisas ali iam ficar feias, Eugênia se via incapaz de fazer os poucos movimentos que a livrariam de uma encrenca maior- levantar-se do chão, empurrar o trinco e sair de fininho. Tudo o que conseguia era se enterrar mais e mais naquela situação horrível e desejar do fundo do seu coração que a deixassem em paz.
Gisela não estava a fim de gastar saliva com aquele disparate. Não pretendia atrasar-se para a reunião, planejava ainda tomar um cafezinho antes dela, ou seja, sob todos os aspectos, não tinha tempo para perder com aquela menina teimosa. A solução era clara: o Beto da manutenção.
-  Seu Beto! Corre aqui!
Seu Beto acompanhava a história desde o começo com certo interesse. Já tinha visto de tudo naquela escola, menina trancada no banheiro era o de menos. No Ensino Médio, aparecia todo dia alguém chorando por conta de namoro, de briga com a mãe, de prova de matemática. Seu Beto era muito observador e, para falar a verdade, gostava do jeito quieto de Eugênia.
-Pois não, dona Gisela.
-Eu já tentei de tudo, olha não posso mais, viu? Força o trinco e tira logo a menina daí.
Sem discutir, Seu Beto se jogou com toda a força contra a portinha, colocando o ombro na frente como nos filmes de ação. Decididamente não precisava ter feito tanto esforço – o trinco era uma coisinha de nada e quebrou com o primeiro impacto. Resultado: o sujeito de dois metros quase caiu com a porta e tudo sobre uma menininha escolhida, pálida e aterrorizada. Um avião fazendo pouso forçado sobre uma cabana de palitos de sorvete não teria impacto maior – Eugênia, pela primeira vez na vida, abriu o berreiro, de soluçar.
Gisela estava com mau humor dos diabos. Além de perder o encontro com o professor de ciências, foi obrigada a ter uma reunião de emergência com os pais da menina. Duas palavras, emergência e pais, que, combinadas, eram receita certa para o desastre.
O quadro era lamentável – a menina chorava cachoeiras de lágrimas, embora em geral fosse quieta como uma múmia. Às vezes, as crianças podiam ser mesmo um mistério. Os pais de Eugênia, então, demonstravam estar pior que a menina, se é que era possível. Traziam um olhar confuso, pasmo, misturado com preocupação profunda, tradução visual perfeita para a frase “O que será que eu fiz de errado meu Deus?”.
- Dona Gisela, eu não estou entendendo. – A mãe parecia perplexa. – Por que Eugênia se trancou no banheiro? Deve haver alguma razão, nossa filha não faz nada por impulso.
- Bem, alguma razão deve haver, mas ela se recusa terminantemente a nos dizer qual.
- Filhinha, você não quer explicar o que aconteceu para todos nós?
Eugênia só fazia chorar e tremer, descontroladamente, mas tentou articular uma resposta:
- EuqueriaquietamasaDanielagritoueaportacaiuemcimademiiiiim!!
Como a resposta não foi compreendida por nenhum dos adultos presentes, estes fizeram um “a-han” só para constar e voltaram a conversar como se Eugênia não estivesse lá.
Gisela, em tom mais grave, enquanto remexia em uma gaveta de papéis em busca de alguns cartões, disse:
- Se eu fosse vocês, procuraria ajuda especializada. Tenho algumas indicações, todas de confiança.
Os pais de Eugênia escutavam atônitos a diretora.
- Mas não posso deixar essa atitude passar impune. Eugênia vai ficar suspensa por dois dias. Eu sei que esse período vai somar aos dias que ela perdeu por estar doente na semana passada, mas acho importante ensinar a noção de consequência para as crianças e...
Gisela não conseguiu acabar a frase, interrompida pela exclamação de surpresa dos dois:
- Doente!? Como assim?

CAPÍTULO 4
           
Os vinte minutos de volta para casa foram os mais longos e incômodos de vida de Eugênia. O silêncio no carro parecia ruim. Mas tudo ficou muito pior quando começou a bronca de sua mãe. Um dia verdadeiramente repugnante.
            A menina entrou no quarto e fechou a porta. Estava sem sobremesa e sem internet por uma semana, de castigo. Furiosa, não conseguia entender como aquilo havia acontecido – ela só tentara evitar problemas, mas agora estava mais encrencada do que nunca.
            Foi direto se queixar a Isaac. Apertou seu botão de ligar com tanta força que quase o quebrou. Seus olhos de LED se acenderam, piscando com simpatia. Os próprios olhos de Eugênia pareciam brilhar de volta, só que com raiva.
            - Isaac, eu não entendo os outros seres humanos. Não mesmo. Eles gritam quando o que mais querem é ficar em silêncio. Ou fecham a boca, sorriem e controlam seus mínimos movimentos, quando no fundo queriam estar sapateando de raiva. Eu nunca fui assim, Isaac, até esta manhã. Hoje, agi exatamente como o resto do mundo, chorei, fiquei paralisada na hora de fazer um simples movimento e ... Quer saber de uma coisa? Nunca me senti tão excluída e injustiçada.
            -Eu entendo você, Eugênia. - A vozinha mecânica de Isaac era estranhamente reconfortante, como o som de uma caixinha de música antiga. – Você nunca vai se sentir excluída na minha companhia, ou na de Zero e Aldo. Essa possibilidade não existe em nossos comandos, opção inválida.
            -Eu sei, vocês três são meus melhores amigos.
            Mesmo Zero e Aldo, em geral mais distantes, sentaram-se ao lado de Eugênia, girando suas rodinhas de modo a fazer cócegas na sola dos pés descalços da menina. Ela riu.
            - O problema são as pessoas. Elas parecem robôs com defeito. E provavelmente vão acabar me transformando na mesma coisa, a julgar pelo meu comportamento hoje. Preciso dar um jeito nisso. E se ...
            Os quatro se entreolharam, cúmplices. Já sabiam o que fazer.
            Eugênia queria aproveitar o tempo de detenção ao máximo. Se tudo desse certo, não teria mais de ouvir bronca, ficar de castigo, ir à escola, comer pimentão, ser obrigada a conversar na hora do jantar ou qualquer chateação possível. Ela estava confiante: com três cérebros a mais, quatro pares de mãos e uma infinidade de ferramentas disponíveis (Aldo podia ser meio chato, mas Eugênia o havia equipado com mais apetrechos do que um canivete suíço), ela calculava que o sucesso era possível. Entendia o tamanho da empreitada, fenomenalmente gigantesca, mas a possibilidade de resolver sua vida inteira em apenas dois dias valeria o esforço. Que bom que robôs não precisavam dormir nem descansar!
            Outra coisa boa: os pais provavelmente ligariam seu sumiço ao castigo e não notariam nada de estranho na sua reclusão. Criança de castigo tinha de ficar trancada no quarto, pelo que ela sabia. Era só caprichar na cara de tristeza e na proteção acústica que ninguém descobriria o que estava acontecendo. Talvez até ensaiasse algumas lágrimas de mentirinha, para quando passasse pela sala ou pela cozinha.
            Na verdade, se qualquer adulto do mundo abrisse a porta do quarto de Eugênia naquele momento, morreria do coração. Digo adultos porque acho que, se uma criança de dois anos visse um dinossauro pela janela, não sei se daria muita atenção, já que nessa idade qualquer cachorro vira-lata parece tão fantástico quanto um alienígena. Mas, de todo modo, dentro daquele apartamento situado em um bairro qualquer, de uma cidade mais qualquer ainda, um cenário digno de filme de ficção científica de Hollywood estava sendo construído.
            Placas de metal revestiam as paredes, cobertas de botões, fios e parafernálias eletrônicas de todo tipo. Uma tela enorme de altíssima resolução cobria o teto, emitindo luzes azul-esverdeadas de tempos em tempos. Os robozinhos corriam de um lado para o outro, parecendo formigas, carregando o triplo de seu peso por cima de suas cabeças.
            No centro da confusão, estava Eugênia, dando ordens para Zero, Aldo e Isaac como se fosse um general. Sentada em sua cadeira roxa de escritório, girava em todos os sentidos, supervisionando a construção.
            -Isaac, reforce a parte elétrica à esquerda! Zero, cheque o funcionamento do identificador principal! Aldo, traga o iogurte de morango que guardei ontem à noite!
            Ela esfregava as mãos, contente, e sorria para si mesma. Aquilo estava ficando magnífico.

CAPÍTULO 5

            Era uma manhã tranquila e agradável. A diretora, a alguns quilômetros dali, abria sua barra de chocolate matinal e lia o caderno de esportes. O Palmeiras tinha perdido de novo. Resolveu abrir uma segunda barra, desta vez com recheio de caramelo.
            Os pais de Eugênia, por sua vez, estavam na cozinha, colocando a mesa de qualquer jeito enquanto esperavam a água do café ferver. Ainda estavam com sono, nenhum dos dois tinha dormido bem. Conversavam sobre quem contaria à filha que ela iria a um psicólogo naquela tarde.
            Só Eugênia, no entanto, sabia o quão diferente seria aquele dia de todos os que já vivido em seus onze anos. Para fazer justiça ao seu feito, mesmo que vivesse mais noventa anos, dificilmente passaria por algo assim novamente. O fato de ter consciência disso só aumentava a pressão do que estava prestes a fazer.
            Ela pensou em como alguns movimentos, mesmo que aparentemente fácies, eram na verdade os mais difíceis de executar. Naquele momento, lembrou-se da cabine do banheiro. Isso a fez decidir de vez – suas mãos não tremiam mais, e foi com segurança que seu dedinho aterrissou no maior botão da cabine de controle da gigantesca máquina instalada em seu quarto nos últimos dois dias. Um eco surdo ressoou pelo apartamento.
            A população da cidade começou a se sentir meio esquisita. A princípio, uma tontura seguida de formigamento na ponta dos dedos se espalhou como uma epidemia. Depois, uma sensação de sonolência gostosa, como um cobertor de lã envolvendo a cidade inteira. Assombrosamente, cada fio de cabelo de cada ser humano em um raio de quilômetros ganhava um brilho prateado, metálico. Em toda parte, o que se via era pele se transformando em alumínio, veias em fios de metal, olhos em telas sensíveis, braços e pernas em tubos articulados com rodinhas.
            Eugênia assistia a tudo em transmissão direta e ao vivo da sua tela no teto do quarto. Sentada na cadeira reclinável, olhava para cima, de vez em quando pegando uma porção de pipocas do balde pousado no colo e mastigando algumas de cada vez, crunch-crunch, balançando as pernas com alegria e agitação.
            Identificava os pontinhos azuis que indicavam seres humanos no visor e, como quem joga videogame, clicava sobre eles, transformando-os em pontos vermelhos. A cor se espalhava depressa pela tela, a perfeita representação do sonho de Eugênia se tornando realidade: em menos de dez minutos, todos os seres humanos da cidade teriam se transformado em robôs.

CAPÍTULO 6
           
            A simplicidade da solução espantava Eugênia. Como ela não havia pensando naquilo antes? Claro, não tinha sido fácil atingir seu objetivo, mas a ideia era brilhantemente óbvia. Um exercício de lógica que até a Daniela, que não era das crianças mais espertas, conseguiria seguir: ela, Eugênia, era um desastre quando se relacionava com pessoas. Porém, ela se comunicava perfeitamente com Zero, Aldo e Isaac.
            E se uma pequena transformação acontecesse? Com sorte, se seu experimento desse certo, ampliaria o raio de ação do aparelho robotizador. Seria o fim das guerras, da fome, do aquecimento global (seus robozinhos funcionavam com energia solar) da extinção das baleias-azuis, da violência. Sem contar, é claro, o fim dos castigos, das bolinhas de cuspe no cabelo e das broncas dos professores.
            Como pessoa prevenida que era, Eugênia tinha programado seus humanos-robôs com as famosas três leia da robótica criadas pelo seu autor preferido de ficção científica, Isaac Asimov:

1-    um robô não pode fazer mal a um ser humano nem permitir que algum mal lhe aconteça;
2-    um robô deve obedecer às ordens dos seres humanos, exceto quando estas contrariem a primeira lei;
3-    um robô deve proteger a si mesmo, desde que com isso não contrarie as duas primeiras leis.

Sendo o único ser humano nas proximidades, ela sabia que estava muito mais segura com aquela população de robôs do que jamais antes estivera em sua existência.
Depois desse pensamento encorajador, Eugênia resolveu espiar como o robô-Pai e a robô-Mãe estavam se comportando. Ainda de pijamas, saiu de pé ante pé do quarto. Meio ressabiada, colocou o nariz na frestinha da porta da copa. O cheiro a nocauteou: o aroma irresistível de bolo de chocolate, macio e quente, anunciava que algo de diferente estava acontecendo na cozinha.
Em seguida, a nuvem intoxicante de cacau e açúcar deu lugar a um cheiro mais sutil – pão torradinho, queijo ... Eugênia não conseguiu mais resistir e escancarou a porta com um só gesto, mal acreditando no que via: de algum modo, ainda era o seu café da manhã de sempre, mas como se alguma fada madrinha o tivesse transformado na Cinderela dos cafés da manhã: uma montanha  de pequenos triângulos perfeitamente empilhados, sanduíches montados com capricho e simplicidade: o pão crocante e dourado abraçando o queijo cremoso e duas fatia de peito de peru salgadinhas  e deliciosamente defumadas. Textura perfeita entre o sólido e o cremoso.
O suco de laranja, no entanto, fez Eugênia lacrimejar. Estava morrendo de sede. Pegou um copinho de vidro na mesa e deu um gole grande, bebendo metade do conteúdo de uma vez. Sem um gominho sequer, mas com sabor de fruta de verdade em vez de gosto de remédio, era com certeza o melhor líquido que já havia bebido. Segurando a jarra e a bandeja de sanduíches estavam sorridentes robôs Pai e Mãe, olhando para ela com toda a ternura que dois olhos mecânicos conseguiam expressar. Depois que a menina se sentou para comer, dissera ao mesmo tempo, quase cantando:
- Eugênia, quando você terminar seu café e quiser ir à escola, é só nos avisar!
O tom de voz das máquinas era animado e um pouco estridente, como uma gravação antiga. Eugênia estava louca para saber o que tinha acontecido com a escola depois da ação do robotizador. Engoliu depressa o resto do terceiro sanduíche e colocou num piscar de olhos os seus tênis de cano médio, bem amarrados. Decidiu ficar de pijama mesmo. Os robôs não iam ligar. Pegou a mochila, cortou uma fatia do bolo de chocolate recém-assado, com a cobertura escorrendo pelas bordas, e o colocou em um pote de plástico. Encheu a garrafinha portátil com o que tinha sobrado do suco, gritando:
-Zero, Aldo, Isaac! Vamos para a escooola!
Entraram no carro, os quatro, acomodando-se no banco de trás. A mãe dirigia cantando a música preferida da filha, “Yellow Submarine”, dos Beatles. Soava exatamente a versão original, de 1996, com trompetes e tudo mais. A menina e os robôs se juntaram a ela, fazendo coro.
Nas ruas, todos os vizinhos, transformados em androides, dançavam uma coreografia sincronizada. Velhinhos, bebês, crianças e adultos de todas as formas e idades davam piruetas e executavam passos de jazz ao som da música: We all live in a yellow submarine, yellow submarine, yellow submarine!
O asfalto refletia a luz do sol, cintilando, como se acompanhasse a felicidade da nova população.

CAPÍTULO 7

            A escola, do lado de fora, parecia a mesma de sempre. A cena arrepiou todos os pelinhos do braço e da nuca de Eugênia. Cerca verde de metal, portaria, paredes pintadas de amarelo-claro. Uma visão que causava embrulhos no estômago de Eugênia toda manhã desde os seus seis anos de idade: ela esperava que fosse diferente daquela vez. A robô-mãe buzinou alegremente, despedindo-se enquanto a menina parava, sozinha, na frente do portão principal.
            Eugênia já se preparava para dar meia-volta em direção à sua casa quando subitamente um pequeno batalhão de robôs apareceu, carregando faixas e tambores como em um desfile. Vendo a cara de espanto da menina, diminuíram o ritmo, mudando o tom da música: de enredo de escola de samba, passaram a marchinha de carnaval de rua, e Eugênia não precisou pronunciar uma palavra sequer. Preferiu assim.
            O desfile era comandado pela diretora Gisela, à frente de todas as crianças, dos funcionários e professores da escola, agora bem melhores em suas versões robóticas.
            A banda de robôs, que davam boas-vindas à sua criadora, só parou de tocar seus instrumentos quando o sinal da escola soou. Eugênia já sabia que as aulas daquela segunda-feira seriam muito diferentes das marcadas e seu calendário escolar. Nada de locução adverbial e divisão com números  fracionados. Esse último conteúdo Eugênia tinha aprendido aos dois anos, sozinha, sem ninguém precisar explicar com feijõezinhos ou a “regra de passar o número para cima”.
            As mudanças eram muito bem-vindas: pela manhã aulas de cálculo avançado, história canina e lendas absolutamente assustadoras de países asiáticos. À tarde, campeonato de videogame e montagem de nave espacial, com direito a pausa ata um chocolate quente preparado pelos robôs-cefs da cantina.
            Voltar para casa também era bom: toda noite os pais robôs a levavam para fazer algum programa especial. Em uma noite qualquer, depois de um jantar maravilhoso, pediram que Eugênia vestisse sua melhor roupa. Ela escolheu um vestido roxo estampado com silhuetas de cachorrinhos basset, uma meia-calça laranja e sapatos-boneca verde-limão. Saindo do quarto, percebeu que seus pais tinham um revestimento metálico com a mesma combinação de cores. Disseram a Eugênia que veriam um concerto no Teatro Municipal.
            A menina ficou levemente desapontada. Não que não gostasse de música clássica, ela até gostava bastante, especialmente das óperas com histórias interessantes: o problema é que já tinha ido ao Municipal algumas vezes com a escola ou com o pai(que, aliás, não podia ver uma orquestra sem gritar “Bravo!”).Depois de  visitar o zoológico para dar um passeio de zebra, a fábrica de doces pra criar um saquinho de balas só com seus sabores preferidos e de passear de avião sobrevoando a cidade, um simples  concerto perdia toda a graça.
            Chegando ao teatro, Eugênia já podia perceber que a coisa seria um pouco diferente do rotineiro toque de trombeta, do cafezinho para os adultos e de sentar-se quietinha lembrando-se de não tossir nem espirrar muito alto. Para começar, todos os robôs emitiam luzes florescentes, como aqueles peixes abissais que tinha visto na TV. Na meia-luz do teatro, o efeito era lindo – parecia a cidade em dezembro, na semana do natal, com luzes brilhantes e um sentimento de felicidade inexplicável no ar.
            As escadarias e colunas pareciam saídas da casa de uma fada ou princesa. O mármore cor-de-rosa suave reluzia como uma pérola do interior de uma concha. Quando viu os tapetes, grossos e peludos, Eugênia não resistiu: tirou os sapatos e as meias para sentir a textura macia e quente do tecido envolvendo seus pés gelados.
            Havia no ar um perfume maravilhoso que fazia a menina se lembrar de todas as coisas boas do mundo – papel couro e tinta – que a levavam direto a uma biblioteca cheia de livros raros e maravilhosos. Caramelo queimado, baunilha e chocolate, a melhor doceira que poderia existir. Grama cortada, flores silvestres e casca de árvores, uma casa de campo ensolarada e acolhedora.
            Tudo, desde o chão perfeitamente quadriculado às cortinas que repetiam a estampa de cachorros de seu vestido, parecia feito sob medida para agradá-la. Os robôs, ao passarem por ela, acenavam e sorriam, piscavam e faziam dancinhas de puro contentamento. Estava na hora de o show começar.
            Um robô especialmente simpático a conduziu para dentro do salão. Em vez de sentar-se em um assento qualquer entre as centenas de lugres disponíveis, Eugênia foi instruída a ficar no cento, onde ficava a orquestra, em um trono azul metálico estampado com estrelinhas e duas almofadas gigantes.
            Uma vez confortavelmente instalada, começou a ver os robôs entrando pela porta principal, um a um, ocupando as poltronas da plateia. Todos carregavam instrumentos – alguns a menina conhecia de nome, outros nunca tinha visto na vida.
            Ela prendeu a respiração: a plateia era só ela, no centro da maior orquestra que já tinha visto na vida. Os robôs pareciam concentrados, mal piscando suas luzinhas. O silêncio na sala indicava que começariam a qualquer minuto.
            A descrição exta do que aconteceu a seguir não cabe dentro de um livro curto como este. Só posso dizer que a música preencheu cada canto do salão, transportando Eugênia a um lugar mágico. O que exatamente foi tocado ela não saberia repetir, mas fora, sem sombra de dúvida, a melhor experiência de sua vida. Quando voltou para casa, ainda sob o efeito estonteante da música e das luzes, pousou a cabeça sobre o travesseiro, tentando em vão se manter acordada para prolongar ao máximo aquele dia perfeito. Enfim desistiu quando se lembrou de que a manhã lhe traria outras 24 horas de felicidade tão maravilhosas como aquelas que haviam terminado.

CAPÍTULO 8

             Os dias seguiam na mais perfeita paz. Eugênia ia aproveitando cada momento, do começo ao fim. Até que certa manhã aconteceu o que você, leitor inteligente, já previa: Eugênia acordou com uma sensação diferente dentro de si. Ela demorou um pouco para descobrir o que estava acontecendo. Era tão ruim em identificar o que sentia quanto e entender os sentimentos das outras pessoas. Esfregou os olhos, sentou-se na cama e perguntou a si mesma se estava com sono. Não, não era sono. Cansada, talvez? Hum, nem um pouco. Triste? Ainda não era isso. Será possível que estivesse ... entediada?
            Mas como? Quem em plena posse de suas faculdades mentais ficaria entediada num mundo em que um bando de robôs encenava uma luta entre um super-herói japonês e o Godzila só pra ela? Em que cada mínimo detalhe do dia era planejado para satisfazer suas vontades? Disse a si mesma que estava ficando doida. Talvez devesse se transformar em robô de uma vez: aquele comportamento humano, honestamente, podia ser muito irritante!
            Tentou afastar os pensamentos perturbadores para longe de si. Foi até seu quarto/cabine de comando e tirou do guarda-roupa uma pequena caixa empoeirada. Sentada no chão, de pernas cruzadas, foi retirando de dentro dela materiais de desenho simples, mas bem-conservados: lápis de cor, um caderno de folhas grossas, canetinhas. Rabiscou a primeira coisa que lhe veio à cabeça, sua família, e chegou à conclusão de que havia ficado bom. A cabeça de seus pais saiu um pouco fora de proporção, e as mãos estavam estranhas, mas a semelhança era inegável. Desenhar tinha sido eficiente para espantar o tédio, mas agora ela sentia uma pontinha de tristeza ao ver as figuras retratadas no caderno.
            Correu para mostrar o desenho para o pai e a mãe robôs: ambos começaram imediatamente a cantar as maravilhas daquela obra-prima, mas, pela primeira vez, Eugênia não se sentiu à vontade com aquelas palavras. Lembrou-se do sorriso do pai ao assinar a sua prova de matemática daquele semestre, antes de o aparelho robotizador entrar em ação. Aquela expressão ela tinha conseguido entender: impossível não ver orgulho e satisfação estampados em todas as linhas do seu rosto, até alguém desligada como ela via isso claramente. No entanto, ele não precisara cantar esses sentimentos em um palco iluminado: foi justamente o fato de ela ter sido capaz de perceber isso sozinha que fez daquele momento uma memória tão importante.
            Foi para a rua, caminhando com a cabeça baixa e passos pesados, o desenho ainda nas mãos. Olhando ao redor, tudo o que conseguia enxergar eram engrenagens, antenas, parafusos. Nada além de metal. Eugênia olhou para as próprias mãos, para os cantinhos machucados de suas unhas, a pele mais solta volta dos dedos. Percebeu que ela ainda era diferente de toso e que, graças ao aparelho robotizador, essa diferença agora era tão gritante quanto a que existia entre um peixinho dourado e um rinoceronte. O pensamento aumentou o nó em sua garganta.
            Dirigiu a atenção novamente para a folha de papel com o desenho de sua família. Outra lembrança veio à sua memória: desta vez, era a mãe, guardando um rabisco que ela havia feito em um post-it amarelo dentro da carteira. Curiosa, ela queria saber o porquê daquele gesto estranho. A resposta a deixava contente: “Ah, filhinha, não quero que acabe jogado fora na faxina, está tão lindo...”
            Outra coisa estranhíssima: ela podia jurar que estava enjoada de sanduíche de peito de peru. Mas se fosse para comer o bendito, preferia até aquele queimado nas pontinhas e no meio que a mãe fazia, mesmo que uma metade fosse sempre diferente da outra ...Estranheza das estranhezas, ela achava que já nem gostava tanto assim de bolo de chocolate.
            Pensou em Zero, Aldo e Isaac, que naqueles dias tinham formado, com ela, um quarteto inseparável. Talvez Eugênia pudesse ficar com os três, e ela os ligaria só de vez em quando, naqueles dias em que a presença de um amigo-robô fosse imprescindível.
            Dobrou o desenho com cuidado e o colocou no bolsa da calça jeans. Era hora de desfazer aquela bagunça: ela aprenderia a lidar com as Danielas desse mundo, de uma maneira ou de outra.
            Eugênia voltou conformada para casa. Entrou suspirando na câmara do aparelho robotizador com o kit de ferramentas na mão e começou a trabalhar: uma a uma, inverteu as ligações, programas e as engrenagens.
            Seus ajudantes, Zero, Aldo e Isaac, obedeciam aos seus comandos como sempre, carregando as muitas ferramentas, virando as páginas de seu livro de engenharia elétrica e aceitando as ordens de sua criadora. Entretanto, estavam estranhamento quietos. Se robôs podem ser expressivos, diria que aqueles três estavam com cara de preocupação.
            Aldo, principalmente, parecia muito azedo: de vez em quando, até ousava soltar fumacinha de suas orelhas de robô, mas Isaac lhe dava um choque quando via o ato de rebeldia, balançando a cabeça com ar de reprovação.
            Eugênia achou melhor não envolver o resto da população de robôs na missão: bem ou mal, eles continuavam vivendo nas mesmas casas e executando mais ou menos as mesmas funções que ocupavam quando humanos. Assim que o raio da máquina fosse neutralizado, seria como se acordassem de um longo sonho, como na história da Bela Adormecida. Nunca perceberiam nada de errado, e a vida correria como antes.
            Tudo pronto. A menina se preparou mentalmente, dando adeus à perfeição da vida com os robôs. Sabia que mão ganharia mais doces finos todo dia ou concertos só para ela, mas aquela coceirinha em seu coração havia começado como tédio estava virando um buraco negro de saudade: aqueles não eram seus pais, e ela não podia mais ficar sem eles, ainda que fossem as pessoas mais complicadas do mundo.
            Com uma postura solene, apertou o botão vermelho e esperou pelo som surdo que deveria ser ouvido a qualquer instante.

CAPÍTULO 9

            Estranhamento, tudo continuou tão silencioso quanto em qualquer outro dia vivido com os robôs. Eugênia saiu correndo em direção à sala ou à cozinha para abraçar seus pais quando se deparou ... com dois seres eletrônicos, acendendo e apagando luzinhas com um sorriso metálico no rosto. O pai e a mãe ainda em versão robótica.
            Eugênia não podia acreditar. Saiu em disparada para o quarto, com falta de ar e os olhos arregalados, trancou a porta e correu até o painel de controle do robotizador. Começou a pressionar freneticamente todos os comandos de desligar, mas nada parecia funcionar: nos visores do teto, as luzes não mudavam de cor; os robôs continuavam tão robôs quanto antes.
O desespero assolou a menina. Ela precisava fazer uma última tentativa de reverter o estrago. Agarrou uma marreta tão pesada quanto ela e desajeitadamente levantou aquela ferramenta monstruosa acima dos ombros. Começou a atingir a máquina com golpes violentos e estabanados.
A ação teve resultado, mas não o esperado: uma explosão gigantesca arrasou a cidade de ponta a ponta. Pela janela, ela via os robôs parando de funcionar, um após o outro, caindo no chão como panelas velhas. O som do metal se chocando com o solo atingia os ouvidos de Eugênia como se fosse o som de metralhadores em um campo de batalha. Horrorizada, ela não conseguia se mover nem desviar os olhos do desastre absoluto que se desenrolava diante de si. De repente, a cidade havia se transformado em um ferro-velho, e tudo por sua culpa.
Eugênia sentou-se no chão, arrasada. Zero, Aldo e Isaac se aproximaram, meio sem jeito. Isaac colocou a mão mecânica o ombro da criadora. Aos prantos, ela culpava os três:
- Por que não me avisaram que isso iria acontecer? Aldo, você sabia o tempo todo?
- Sim. A estrutura humana é muito complexa. Não suportaria mudar de forma pela segunda vez, o princípio não funciona assim. Transformar máquinas em carne e osso é impossível. A senhorita devia ter previsto.
- E por que você não me impediu? Nenhum de vocês?
Desta vez, foi Isaac quem tomou a palavra:
-Eu só ajo como você gostaria que eu agisse, Eugênia. Está no programa. Eu impedi o Aldo de lhe contar porque você ficaria muito chateada com as informações.
-Você mentiu pra mim? Também está no programa? É impossível! Você não pode mentir!
-Negativo. Em nenhum momento transmiti palavras falsas ou inventei fatos inexistentes. Lamento muito. Segui seu código, criadora.
Zero só acendia e apagava suas luzinhas procurando um buraco qualquer para se esconder, desconfortável com todas aquelas emoções.
O Sol estava se pondo. Os robôs, agora pouco mais que bonecos sem vida, refletiam aquela estranha luz alaranjada que atingia o céu, projetando sombras estranhas nas ruas desertas. Logo anoiteceria. O pensamento aterrorizou Eugênia: a menina tão racional, não conseguia sentir nada além de pânico ao pensar que ficaria sozinha, no escuro, em uma cidade-fantasma.
No entanto, não conseguia olhar para seus três robôs sem raiva ou tristeza profunda. Pediu aos três que se retirassem e deitou-se na cama, olhando fixamente para o teto, agora sem luzes piscando, enquanto sua cabeça se enchia de pensamentos ruins.
Estava quase caindo no sono, esgotada pelo cansaço, quando viu algo que a despertou completamente. Ela deu um salto na cama; aquilo no monitor quebrado era uma luz indicando presença humana?
Eugênia levantou-se de imediato, analisando o monitor mais de perto. A tal luzinha azul estava nas proximidades de sua casa. Quem ou o que poderia ser? Seu coração batia como se fosse sair pela boca, ela suava frio, mas era uma menina corajosa e sabia que precisava tirar história a limpo. A situação estava tão ruim que não poderia piorar.
Calçou os chinelos, pegou uma lanterna e saiu na rua deserta. Segurando-a com as duas mãos, falou:
-Quem está aí?
Era para a frase ter soado alta e destemida.
Acabou saindo um fiapo de voz choroso e fraquinho. Mesmo assim, ela recebeu uma resposta. 
-Eugênia?
A menina, por instinto, apontou a luz na direção daquela voz estranhamente familiar. O feixe iluminou um rosto risonho que ela conhecia bem: seu Beto da manutenção?!
O faz-tudo da escola estava usando seu uniforme de sempre, um macacão azul quase fosforescente. Com as mãos na cintura e um sorriso n rosto, ele encarava a menina com bom humor e curiosidade.
Sentaram-se os dois no meio-fio da calçada. Seu Beto tirou uma garrafa térmica da mochila e ofereceu a Eugênia. Era chá de capim-cidreira. A menina estava tão confusa com a presença dele que não conseguia fazer nenhuma das milhões de perguntas que passava pela sua cabeça: por que ele não tinha virado robô? O que estava fazendo ali? E por que parecia tão calmo em uma cidade cheia de robôs quebrados, no meio da noite, com uma menina de onde anos? Sua cabeça girava, sem parar.
-Tá nervosa, menina? Chá de capim-cidreira é bom para isso. Toma outro golinho.
-Como ... Você não está nervoso? Olha só pra cidade! É tudo culpa minha!
-Ah, bom, essas coisas às vezes acontecem mesmo, né. Mas uma hora tudo passa, pode deixar.
-Seu Beto, não passa não, eu já tentei de todo jeito que podia! Não posso fazer nada mesmo!
-Bem, se não dá pra fazer nada agora, o jeito é esperar. Mais um pouco de chá? Ainda está morno, ó.
Eugênia aceitou. Ficaram os dois em silêncio, ouvindo o som do vento e outros barulhinhos noturno: grilos, um cachorro vira-lata uivando para a Lua. A menina tirou do bolso o seu desenho e apontou as duas figuras no meio da folha, mostrando-as para seu Beto.
-Olha, esses são meu pai e minha mãe. Eu os transformei em robôs porque eles não gostavam de mim e eu não conseguia entender nenhum dos dois, mas agora queira não ter feito isso.
-Bem, mas não era verdade, era?
-Como assim?
-Tenho certeza que eles gostavam de você, menina. E que você conseguia entender os dois perfeitamente bem.
-Não, tudo o que eles faziam era sem sentido! Por exemplo, minha mãe: às vezes ela dizia que brigava comigo porque esse era o jeito dela de mostrar que estava preocupada. E meu pai, que quando queria muito gritar comigo, preferia ficar quieto. São as pessoas mais difíceis de entender que já conheci!
-Parece confuso mesmo. Mas no fundo, no fundo, você não sentia que eles estavam falando a verdade?
-Acho que sim. Acho que você tem razão. Eu não sabia que entendia, só isso.
- E se você conseguia entenderas pessoas que você considera as mais complicadas que já conheceu ... Acho que podia dar um jeito de se virar com o resto do mundo, não é?
-É. Ou era, não sei. Agora é tarde demais.
-Será? Por que não dorme um pouco? Os problemas às vezes diminuem sob os primeiros raios de luz da manhã. Alguns até desaparecem de vez: parece que têm medo do Sol ...
Eugênia não conseguiu encontrar forças para lutar contra aquele argumento. Estava tão cansada que já não sabia mais se estava sonhando ou acordada: tudo parecia muito distante, coberto por uma névoa branca ... Apoiou a cabeça em uma árvore da calçada e pegou no sono quase de imediato.
Enquanto Eugênia dormia, algo muito estranho começou a acontecer. Em sua casa, na cozinha, o pai e a mãe robôs iniciaram uma mudança inédita: primeiro, a cobertura metálica foi lentamente se transformando em tecido humano. Logo estavam revestidos de pele, quente e macia. Fios de cabelo voltaram a crescer onde antes só havia cobre. Órgãos internos substituíam engrenagens, mãos e pés no lugar de rodinhas.
Eles foram os primeiros, mas em mens de uma hora, toda a população de robôs começou a apresentar sinais humanos, aquilo se espalhava como gripe no inverno. Os efeitos do robotizador tinham sumido, tudo num passe de mágica. Se isso aconteceu porque a ação do aparelho era temporária ou conta da conversa entre Eugênia e seu Beto, eu não sei dizer: o importante é que, como como ele havia previsto, o problema de Eugênia sumiu assim que os primeiros raios de Sol tocaram a cidade.

CAPÍTULO 10

            Eugênia abriu os olhos, ainda sonolenta. Por alguns minutos, esqueceu-se de tudo que havia acontecido na noite passada. Estava esperando ser acordada por uma orquestra de robôs dançantes ou algo do gênero, mas foi só olhar ao redor para que a lembrança da destruição do robotizador voltasse à memória: o quarto estava uma bagunça, com engenhocas quebradas por todos os lados, telas espatifadas, fios soltos ...
Foi até a cozinha pegar um copo de leite e alguma fruta na geladeira: apesar de chateada, estava morrendo de fome. Quando fechou a porta, tomou um susto tão grande que derrubou o copo no chão.
-Eugênia, eu sei que você ainda está brava comigo, mas espero pelo menos que me dê um bom dia!
Se o espírito de Leonardo da Vinci tivesse encarnado naquele exato momento no cômodo, a menina não teria ficado tão surpresa: quem estava parada, batendo o pé no chão de pijamas e com uma gigantesca cara de mau humor era a sua mãe em carne e osso! Ela esqueceu como ficava constrangida com demonstrações de afeto e, ainda segurando uma mexerica, jogou-se com tudo no colo da mãe.
A surpresa de Eugênia não era nada comparada à da mãe – a mulher literalmente caiu para trás, parte por conta do peso da filha, parte porque esperava um abraço daquele desde que a menina era um tiquinho de gente e não achou que o receberia tão cedo, principalmente depois de um castigo prolongado! Não conseguiu segurar as lágrimas, que limpou com as costas da mão, rindo Eugênia percebeu o gesto.
-Ah, mãe, você está chorando, mas está contente, não é? Agora acho que entendi!
O pai abriu a porta, deparando-se com aquela cena estranhíssima na cozinha. Será que ainda estava dormindo? Tinha tido pesadelos a noite inteira: alguma coisa a ver com ter sido transformado em um robô ... Não devia ter comido queijo antes de dormir.
- O que vocês estão fazendo no chão? Querida, você escorregou?
Os três começaram gargalhar, sem saber o porquê. Eugênia pensou, naquele momento, que algumas coisas eram ainda melhores quando aconteciam espontaneamente.
-Ah, Eugênia, depois de preparar seu sanduíche de peito de peru, vou deixar você na escola, tudo bem? E você ainda tem que se consultar com aquele psicólogo que a diretora indicou. É no fim da tarde, mocinha, não se esqueça.
-Tudo bem. Mas ... Eu não quero mais esse sanduíche por um bom tempo, mãe. E eu preciso arrumar o meu quarto depois da aula!

CAPÍTULO 11

            Eugênia era rápida: em algumas horas, a antiga câmara de comando parecia o mesmo quartinho branco de sempre, talvez um pouco menos organizado.  Só não conseguiu achar Aldo, Zero e Isaac de jeito nenhum: onde será que aqueles robôs tinham se metido? Ela deu de ombros, conformada. Sabia que em algum momento teria de dizer adeus aos três. Mas achava que teria mais tempo para se despedir ...
            Seu dia na escola não foi perfeito, claro. Mas Eugênia ignorou solenemente as provocações da Daniela e das outras crianças. Além disso, tinha conseguido resolver um problema na lousa, na aula de matemática, na frente da classe inteira! Se ela tinha resolvido o problema usando operações avançadas demais e ninguém tinha entendido, era problema deles. Uma coisa ela havia aprendido com os robôs: às vezes, era bom ser especial.
            Abriu um sorriso enorme ao ver a cara de incredulidade da professora folheando o livro didático de trás para frente, completamente pasma. Depois da aula, conversaram longamente. A menina deveria passar a frequentar um grupo de estudos para alunos com habilidades especiais em matemática. Mesmo se Eugênia de repente envelhecesse dez anos, ainda seria a caçula, mas a possibilidade de partilhar algo que ela amava de todo o coração com pessoas que também viam os números como uma espécie de mágica a fez perder um pouco do medo que tinha da palavra “grupo”.
            Outra coisa importantíssima: ela agora tinha um amigo na escola. O seu Beto, claro! Ela sabia que podia conversar com ele sobre muitas coisas. Dona Gisela observava de longe a mudança de comportamento social da menina. No entanto, tinha coisas mais importantes a fazer, afinal, o Campeonato Brasileiro estava para começar!
            Em casa, chutando uma última engrenagem para baixo da cama, Eugênia respirou fundo e fechou a porta do quarto um pouco tensa. Passou as mãos no cabelo, ajeitou o agasalho e deu um passo para fora: estava pronta para visitar o psicólogo.
            -Vamos, filha? Já estamos um pouco atrasadas!
            -Mãe, como ele se chama mesmo?
            -Isaac. Acho que você vai gostar dele, Eugênia, dizem que é tão bom que parece ler os pensamentos dos pacientes inteligentes e especiais como você!
            Eugênia sorriu, encantada. Tinha um bom pressentimento sobre aquele tal de Isaac.Com esse nome e meio telepata, ela definitivamente não tinha nada a temer.


















 
JANAÍNA TOKITAKA nasceu em São Paulo, em 1986.Escritora e ilustradora, Janaína é formada em Artes Plásticas pela ECA-USP. Autora de outros 11 livros de literatura infanto-juvenil, escritos e ilustrados por ela, entre eles De noite, na cidade, também publicado pela Rocco Jovens Leitores. Assinou a ilustração de cerca de 30 obras de autores nacionais e estrangeiros, como Contos populares japoneses, de Adriana Lisboa, Poesia é Fogo, é Terra, é Água, é Ar!, de Sandra Lopes, e O mistério da estrela de Neil Gaiman.













O LIVRO

            Eugênia tem 11 anos e é mais inteligente que Einstein e Da Vinci juntos. Na escola, Eugênia não tem amigos. Acha muito difícil entender as reações das pessoas e a forma como se comportam; acha-as incompreensíveis. Eugênia decide, então, construir amigos robôs, com quem brinca e se diverte muito ...
            Mas Eugênia não para por aí; já que continua não se dando nem com os humanos, decide tomar uma atitude radical: transformar rodas as pessoas em robôs. Será que isso vai dar certo?



Ao ler Eugênia e os robôs você viverá a história de uma menina que se sente diferente e tem dificuldade em se relacionar com as pessoas. Sente-se sozinha e se comporta de tal forma que não consegue se aproximar dos colegas, fazer amigos e nem ser aceita, já que também não aceitos os outros como eles são.
            A história trará a oportunidade de pensar sobre bullying, sobre isolamento, sobre as questões de relacionamento, sobre aceitar o outro e tentar conviver bem com o diferente e, ainda sobre as vantagens e desvantagens do uso da tecnologia em nossas vidas.