TOKITAKA,
Janaína. Eugênia e os robôs. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores,2014.
CAPÍTULO
1
Uma coisa é certa: existem
tantos tipos de crianças no mundo quanto há diferentes espécies aquáticas no
oceano. Eu explico: assim como não é possível encontrar duas sardinhas
exatamente iguais, por exemplo, certamente não há um filhote de gente como o
outro.
Algumas
crianças gostam de futebol, quadrinhos de super-herói e bolo de chocolate.
Outras pessoas preferem livros de aventura, colecionar pedrinhas redondas e
adoram balas de goma em forma de aranha. Conheci uma vez uma menina que achava
muito divertido ir no dentista e posso garantir que ela não estava mentindo!
Eugênia
não era apenas a única como qualquer outra pessoa no mundo: era drasticamente,
irremediavelmente, completamente diferente de que qualquer outra criança.
O
que estou tentando dizer é que Eugênia jamais seria amiga da menina do
dentista, por exemplo, que decerto é uma das figuras mais esquisitas que já
conheci. Também nunca se sentaria na mesma mesa do menino que acordava cedo
para estudar matemática, ainda gostando muito dessa matéria.
Eugênia
poderia ser considerada um objeto de estudo interessantíssimo por
muitos cientistas se não fosse uma menina de onze anos bastante confusa, em
conflito com a vida e que simplesmente não conseguia fazer amigos.
O
problema dela era bem complicado: seria como se pedissem que você pilotasse um
submarino. Ou que fizesse, do zero, sorvete napolitano. Ou que lambesse seu
próprio cotovelo. Agora imagine que o resto do mundo lambesse o cotovelo
pilotando um submarino enquanto toma um sorvete de napolitano feito pelas
próprias mãos, assim, facinho, como quem passeia no parque. Aposto que você ia
ficar achando que o mundo estava de brincadeira. Mas era mais ou menos assim
que Eugênia se sentia.
Ninguém,
entretanto, poderia acusa-la de nunca ter tentado: ela simplesmente havia
esgotado todas as maneiras de começar um papinho normal no recreio da escola,
na fila é que todos os diálogos eram mais ou menos assim quando alguém puxava
assunto
-Oi
Eugênia, tudo bem?
-Não.
Era
a mais absoluta verdade. Como poderia estar TUDO bom? Todas as coisas do mundo
estavam funcionando perfeitamente? Nada mais ou menos? Nada nem um pouquinho
ruim? A pergunta era fácil, a resposta certa devia ser não, certo?
Errado.
A maioria das pessoas dava de
ombros, pensando que aquela menina era meio estranha mesmo. Uns realmente se
ofendiam: “Eugênia é grosseira, nariz em pé, louca, todas as anteriores.”
Ela observava com muita atenção
e tentava, sem sucesso, fazer o que as pessoas pareciam nascer sabendo. Abria o
maior sorrisão e sapecava um “Oi. Tudo bem?” para a menina que tinha acabado de
levar um tombo daqueles que praticamente arrancava o joelho fora. A menina
tinha lágrimas nos olhos e, ainda assim, respondeu: “Tudo”. Para Eugênia, era o
mais intrigante dos comportamentos. O tipo de coisa que deixava paralisada.
Como alguém conseguia interpretar aquela multidão de sinais contraditórios? O
pânico tomava conta de Eugênia, e ele saía correndo, em disparada, até suas
pernas começarem a tremer.
Deu para perceber a gravidade
da situação, certo?
Cada nova tentativa de
encontrar um amigo era acompanhada de risos e zoações. A rejeição era geral.
Eugênia não conseguia fazer amizade até com a professora, com a moça da
cantina, com os colegas de classe ou com qualquer pessoa do planeta, então,
passou a evitar todos categoricamente. Concluiu, com um suspiro, que não valia
o esforço. Mas não se conformou em passar o resto de sua vida sem nenhum tipo
de companhia...
Acho que eu me esqueci de
mencionar uma coisa muito importante sobre Eugênia: ela era muito inteligente.
Mesmo. Muito mais inteligente que Albert Einstein, Leonardo da Vinci e o cara
que inventou o videogame, todos juntos. O esforço ela dispensava ao tentar
fazer amigos o oposto do que ela fazia para quase todas as outras atividades
mentais.
Aos onze anos, ela já havia
desmontado e montado de diversas vezes todos os aparelhos eletrônicos da casa
com tanta habilidade que seus pais nem perceberam a façanha, tampouco se
espantaram diante da melhora na imagem da TV, da velocidade da máquina de café,
que antes produzia um líquido morno bem ruinzinho e agora da de dez a zero na
cafeteria chique do bairro.
Eugênia também havia lido
todos os livros de mecânica e elétrica avançadas do seu pai, engenheiro, e
corrigido alguns errinhos do autor com anotações em post-its coloridos. Um dia,
no banho, descobriu como construir uma nave espacial enquanto ensaboava os
dedos do pé, mas deixou para lá porque não conseguia pensar em uma boa razão
para visitar a Lua. Até onde ela sabia, lá era deserto, meio feio e sem graça.
Então, ela decidiu resolver o problema à sua maneira, mais fácil e natural. Sua
única chance de “fazer amigos” seria seguir o significado da frase ao pé da
letra. Afinal, as pessoas não diziam que amizade é algo que constrói?
CAPÍTULO
2
Eugênia já tinha o plano
perfeito traçado em sua mente: agora era uma questão de meros preparativos, e
nisso, felizmente, ela era muito boa. Não seria fácil, claro, mas era
completamente possível: o mais complicado seria manter segredo de seus pais.
Os pais de Eugênia, aliás,
eram como o resto do mundo para ela. Indecifráveis,
com frequência faziam coisas estranhas e a deixavam ligeiramente nervosa. Tanto
o pai quanto a mãe pareciam estar sempre insatisfeitos com ela, preocupavam-se
com coisas bobas. Àquele ponto, Eugênia já os tinha declarado “as pessoas mais
difíceis de entender do mundo inteiro” e deixado o problema registrado como sem
solução.
O dia havia começado como
qualquer outro. Eugênia fez a questão de que fosse assim. Você, que está lendo
este texto, pode até gostar de variar seu café da manhã e comer bolacha
recheada sabor doce de leite em outro dia e pão com manteiga em outro, mas , se
havia uma coisa que acabava com o humor dela, era uma mudança no cardápio da
primeira refeição.
Todo santo dia, Eugênia
montava o mesmo sanduíche. Duas fatias idênticas de pão de forma, sem casca e
sem grãos, cortadas em triângulos e recheadas de queijo molinho e peito de
peru, acompanhadas de suco de laranja. Tinha de ser coado, obviamente, já que
Eugênia detestava sentir aqueles gominhos “nojentos” presos entre os dentes.
Após o café da manhã, Eugênia
pegou mochila, os livros e os cadernos e saiu do prédio como quem vai à escola.
Deu até um sorrisinho amarelo para os pais, algo que vinha ensaiando em frente
ao espelho todas as noites. Virando o quarteirão, onde costumava pegar a
condução escolar, escondeu-se atrás de uma moita enorme de azaleias.
Nem dez minutos depois, ela
viu o carro prateado dos pais passar à sua frente. A mãe aproveitava para
retocar o batom no retrovisor e o pai cantava uma música do rádio a plenos
pulmões ação. Era um sinal para entrar em ação. Voltou para casa correndo,
entrou no computador. Abriu o e-mail da mãe, o qual tinha aprendido a invadir
aos cinco anos, e depois um programa de edição de imagem. Copiou, com
perfeição, um atestado médico dizendo que estava com... Eugênia coçou a cabeça.
Amigdalite? Sarampo? Perna quebrada? Optou por gripo comum, pois havia dois
colegas de classe com a doença.
Anexou o documento ao e-mail e
o enviou para a diretora da escola, pedindo com firmeza que não telefonassem
para confirmar o recebimento, alegando que o “aparelho se encontrava quebrado”.
Parecia algo saído da boca da sua mãe: “E, se de fato fosse preciso,
respondessem para aquele mesmo endereço eletrônico.” A menina sabia que a mãe
olhava as mensagens uma vez por semana, se tanto. Isso lhe daria tempo
suficiente para inventar uma resposta se alguém quiser saber detalhes sobre sua
saúde, coisa que duvidava muito disso que pudesse acontecer, mas era bom ser
prudente.
Eugênia prendeu os cabelos
lisos em um rabo de cavalo alto, bem puxado, para não cair no rosto, arrumou os
óculos tortos no nariz e foi à caça. Juntou, formando uma pilha monstruosa no
meio da sala, todos os de tralhas eletrônicas que conseguiu encontrar.
Controles remotos, relógios quebrados, baterias de aparelhos perdidos, um treco
de cozinha que Eugênia nunca tinha visto ninguém usar, mas que aparentemente
cortava legumes em formato de estrelinha, um par de óculos de visão noturna, um
trambolho de meio quilo que parecia ser algum modelo antigo de celular e outros
utensílios inúteis de casa. Um fio de suor escorria pela sua testa, e seus
tênis brancos estavam completamente imundos, mas ela se sentia radiante. Era
muito, muito mais do esperava. Com aquela matéria-prima, poderia fazer não
apenas um, mas três amigos. O que mais poderia querer de manhã em que matou
aula pela primeira vez?
Arrastou aqueles precisos
materiais um por um até seu quarto. Era a única vez que o cômodo branco parecia
mais ou menos com o quarto de qualquer outra criança. Havia mais objetos
esparramados no chão do que empilhados na prateleira por onde de cor e tamanho.
Eugênia abriu seu kit de ferramentas, a coisa que ela mais gostava de ter.
Sentia orgulho daquele estojo enorme: cada peça havia sido um presente de Natal
ou de aniversário. Não entendia a necessidade de ter um videogame de última
geração se, pelo mesmo preço, ela poderia ter a Steel 2000, uma supersolda poderosíssima
que derretia até o mais duro dos metais. O complicado era aguentar as queixas
dos pais e avós, que questionavam como uma menina de onze anos poderia preferir
um kit de parafusos a um kit de maquiagem com glitter. Pegou os materiais e
começou a trabalhar com dedicação no que viria sair a ser seu primeiro amigo:
um robô inteligente, quase humano.
Zero era uma réplica sua sob
todos os aspectos. Não que não funcionasse bem, isso seria impossível para uma
criadora engenhosa como Eugênia. O problema é que havia semelhanças demais
entre criador e criatura. Era como se a menina se enxergasse em um espelho
vivo, com todos os defeitos e as manias que mais detestava desfilando à sua
frente. O robô parecia antipático, tímido e desinteressante aos seus olhos, e
ela não podia culpá-lo por possuir qualquer uma dessas características.
Percebendo que ficaria louca se seu único amigo fosse também sua cópia
perfeita, Eugênia partiu para a construção do amigo número 2.
Aldo foi um avanço em relação
a Zero. Eugênia tentou fazer uma versão melhorada de si mesma: mais
inteligente, mais eficiente, mais rápida! Infelizmente, a menina se esqueceu,
ao ampliar suas próprias qualidades, de diminuir o que percebia como seus
defeitos. Aldo era um robô brilhante, mas tão desajeitado quanto sua criadora.
Eugênia tentou puxar papo:
-Oi, Aldo.
-Olá – disse numa vozinha
metalizada e esnobe. – A senhorita cometeu uma falha. Não possuo códigos de
sociabilização no meu programa.
- Ih, verdade. Puxa. Não dá
pra consertar.
-Já havia percebido. Por
favor, me destrua. Não quero ser imperfeito.
- Ah, acho que não. Deu
trabalho sabe, sabe. Vai brincar com o Zero ali, vai.
- Não possuo o código, não sei
brincar.
-Tudo bem, ele também não
sabe.
Os dois robôs se sentaram um
do lado do outro, cada qual com um volume da colação Matemática Aplicada II. A
leitura não cativou a atenção de Aldo.
Eugênia resolveu pensar
diferente. Seguir uma nova receita. Colocou todas as características humanas
que conhecia no seu computador e sorteou algumas. Provavelmente, foi assim que
todas as pessoas foram feitas, pensou.
Era a única explicação para o
quão contraditórias poderiam ser de vez em quando. Algumas características, no
entanto, ela escolheu como não optativas: o robô deveria gostar de doce, fazer
piadas que ela entendesse (Eugênia tinha extrema dificuldade em entender coisas
que pareciam engraçadas para o resto da humanidade) e não poderia mentir para
ela em hipótese alguma.
Eugênia, então, carregou o
robô número 3 com seus próprios dados – suas músicas favoritas, comidas que não
suportava, cores que achava bonitas, livros de que mais gostava. Como ela
gostava que falassem com ela, o que espertar de todas as suas ações, quando
queria conversar e quando deveria ser deixada em paz. Assim, o robô já nasceria
conhecendo-a desde sempre, melhor do que qualquer pessoa no planeta.
Tremendo, suja de graxa e
suando muito (três coisas que ela nunca experimentara até então), Eugênia
apertou o botão vermelho que ligaria sua última e melhor invenção, batizada de
Isaac.
- Você...
- Sim, está tudo bem comigo,
não poderia estar melhor! Vamos jogar xadrez, fazer um bolo de chocolate e
pesquisar marcas de cachorros na internet?
- Era exatamente o que eu queria
fazer!
E lá se foram felizes, Isaac,
e Eugênia, seguidos de longe por Zero e Aldo.
CAPÍTULO 3
Os pais de Eugênia estavam
acostumados com a mania da filha de passa horas afio trancada no quarto, lendo
ou navegando na internet, mas nunca como naquele fim de semana. Eles estavam
aflitos porque a menina tinha descido à cozinha de manhã cedo, aberto a
geladeira pegado o saco de pão, frios e alguns sucos de caixinha. E, desde
então, não descera mais. Seriam risadas que estavam ouvindo por detrás da porta
do quarto? O pai resolveu tentar primeiro:
- Filhinha, vamos sair? Vamos
ao parque?
- Ao parque não Geraldo!
-sussurrou a mãe. -Da última vez que fomos ao parque, ela ficou nervosa com a
mulher do cachorro-quente, lembra? E passou mal naquele brinquedo que gira.
-Então não sei, Carolina, fala
você com ela!
-Filha, vamos àquela livraria
que tem a lanchonete cheia de guloseimas? Deixo você pedir duas fatias de bolo
e refrigerante.
Essa era a cartada final. Bolo
de chocolate e livros eram uma combinação irresistível para Eugênia. A mãe
nunca tinha visto a menina recusar o programa na vida e, como vocês sabem, mães
costumam pensar que conhecem os filhos como ninguém. Não era diferente com a
mãe de Eugênia, mesmo ela sendo uma menina tão difícil de entender. Talvez seja
verdade que as mães nos conhecem mais do que conhecemos a nós mesmos. Você por
acaso se lembra de quando tinha um ano de idade? Pode apostar que sua mãe se
lembra até da temperatura certa da sua mamadeira e de todos os detalhes da sua
carinha de bebê.
Só que, para surpresa da mãe,
Eugênia respondeu:
-Não. Hoje não quero.
Os pais de Eugênia se
entreolharam, angustiados. Era a gota d’água. Se ela não havia cedido agora,
sabiam que não havia mais jeito. Afastaram-se, esperando que a situação
melhorasse naturalmente nos dias seguintes.
Na segunda-feira, Eugênia
ainda estava vibrante com a perfeição de seu fim de semana. Zerou todos os
jogos do computador com a ajuda de Zero, Aldo e Isaac, criou um programa que
conseguia dizer se uma maçã estava farinhenta ou não em dois minutos e,
acredite, tinha conversado sobre sua vida com Isaac por um tempão.
Ela se esqueceu por completo
da monotonia da escola, do esforço sobre-humano para responder em voz alta às
perguntas bobas dos educadores, das humilhações no recreio. Eugênia, ao
contrário de seus colegas, adorava a aula dos professores mais bravos, aqueles
que não aceitavam um pio dos alunos. Assim podia ficar sossegada, pois todos ao
eu redor fariam silêncio também.
Decidiu que ignoraria qualquer
pessoa que cruzasse seu caminho. Fugiria das pequenas multidões da escola, se
fosse preciso. Evitaria filhas, grupinhos de meninos trocando figurinhas,
meninas jogando vôlei. Para se proteger, responderia apenas a quem se dirigisse
a ela com uma pergunta direta.
Agora que tinha não apenas um,
mas três amigos, ela não precisava se cansar tentando criar laços com um mundo
que também não se esforçava muito para compreendê-la.
Chegando à escola, logo se
dirigiu à sua carteira de sempre – nem muito na frente, nem muito atrás,
encostada na parede e longe da janela. Sentou-se quietinha e não reclamou
sequer uma vez: nem quando a professora de História, reprovou sua atitude por
não ser participativa, nem quando aquele moleque infernal, Edu, jogou bolinhas
de papel e cuspe no seu cabelo durante a prova de matemática.
Eugênia sabia, no entanto, que
em casa lhe esperava um amigo para o qual sequer precisaria falar o que estava
a sentindo – ele, como mágica, adivinharia e faria todas as suas vontades. Ela
duvidava de que qualquer uma daquelas crianças tivesse tanta sorte e repetia
para si mesma que aquelas cinco horas diárias intermináveis eram rápidas se
comparadas ao resto do dia que passaria conversando sobre seus assuntos
preferidos com os amigos robôs.
O único momento em que o desespero
tomava conta da menina era o bendito intervalo. Pelo menos na aula de educação
física as instruções eram claras. Ela não conseguia seguir nenhuma delas, mas
entendia a finalidade do jogo: acertar a bola mais vezes na rede, correr mais
rápido do que outros, aguentar mais tempo pendurado em uma barra ... pelo
menos, era um sofrimento ordenado.
Na hora do recreio, ela
conseguia ver que havia regras, mas não era capaz de segui-las de modo algum.
Assim, naquela manhã, decidiu o que faria em todos os recreios pelo resto da
vida. Ela se trancaria no banheiro, pronto. Não incomodaria ninguém.
Ouvindo o sinal tocar, Eugênia
prontamente pegou sua lancheira, seu livro de poemas japoneses e um caderninho
e se enfiou numa cabine do banheiro feminino. Trancou a porta e sentou-se na
tampa da privada, rezando para os vinte e cinco minutos passaram depressa.
Já estava no quinto ou sexto
haicai quando ouviu passos e viu pelo vão da portinha do banheiro dois sapatos
familiares se aproximando. Eugênia gelou. Ela odiava aquelas cadarços
cor-de-rosa mais do que tudo na vida e podia reconhecer aquele horroroso
adesivo holográfico colado na pontinha do tênis em qualquer lugar do mundo. Era
Daniela, com certeza. Que menina desprezível, com suas pulseirinhas de miçangas
e seu sorriso falso. Eugênia sabia que, por detrás dos cadernos com cheiro de
chiclete, existia um monstro que faria qualquer conde drácula parecer um
carneirinho.
-Eugênia, eu sei que você está
aí.
-Ehr. Este banheiro está
ocupado.
-Olha, eu achava que você era
só louca e chata, mas pooor favooor, Eugênia. -Ela arrastava as palavras de um
jeito entediado. - Sinceramente, eu até acho que mora em banheiro combina com
você.
Eugênia suava frio a cada frase.
Ouvia risadinhas maldosas por detrás da porta, vindas do grupo de meninas que
sempre acompanhava Daniela.
-Mas acontece que essa é minha
privada. E ninguém mais pode usá-la, muito menos você, por mais que eu prefira
que gente assim, feia e esquisita, se tranque longe da minha cara para sempre.
Então saia daí agora. Agora!
Eugênia estava acostumada a
pensar rápido, mais havia algo no tom de voz arrogante daquela menina que
realmente a intimidava. Como um bichinho assustado, sua vontade era se encolher
cada vez mais naquele cubículo e não sair de lá nunca mais, e a demora só
contribuiu para aumentar a fúria de Daniela, que por fim se revoltou:
-Tudo bem, aberração, você
pediu.
Eugênia respirou aliviada. Será
que ela tinha desistido? Não, não seria tão fácil. Não haviam se passado nem
cinco minutos quando um par diferente de sapatos apareceu no campo de visão de
Eugênia. Eram quadrados e de verniz vermelho. Indiscutivelmente, os sapatos de
bedel Cristina.
-Eugênia, saia daí, vamos. A
Daniela está preocupada com você. Isso não é lugar de menina ficar durante o
recreio. Vai brincar lá fora.
A pressão só estava
aumentando, e Eugênia não conseguia dizer palavra alguma. Ela colocou a cabeça
entre os joelhos e abraçou as pernas, com força, sem mover um músculo sequer.
Um amontoado de crianças
curiosas estava se acotovelando no banheiro feminino. Crianças de outros anos e
até funcionários tentavam descobrir o que estava acontecendo. Começaram um
coro: “A-bre, a-bre, a-bre, a-bre!”
Minutos depois, a diretora
Gisela foi informada sobre a confusão no banheiro das meninas. Resolveu, então,
checar pessoalmente o que se passava. Pequena e redonda sempre vestida com
conjuntinhos lilases ou cor-de-rosa, ela caminhou pelos corredores
cumprimentando um e outro com sua voz fina como uma flautinha de plástico.
Sabia que, se quisesse que a paz voltasse a reinar no colégio naquele dia, a
menina teria de sair logo da cabine do banheiro. Simples.
A diretora se lembrava
vagamente de Eugênia, uma aluna que costumava ficar lendo em qualquer canto do
pátio e que, para Gisela, tinha uma cara de ratinho molhado. Era pequena para a
idade e meio magricela. Muito inteligente e tímida, mas não era do tipo de
criar caso com ninguém. Tirá-la do banheiro ia ser fácil, de preferência
rápido. Assim ela voltaria a tempo de se encontrar com o professor de ciências
com quem tinha marcado uma reunião.
Entrou no banheiro com
cuidado, abrindo caminho com as mãos por entre aquela multidão de crianças
gritando, urrando e batendo os pés, até chegar diante da porta trancada. Elevou
a voz esganiçada:
-Crianças, quem não sair daqui
agora vai levar suspensão. Vou contar até três!
Num segundo, o banheiro
parecia um deserto.
-Eugênia, a advertência vale
para você também. Quer levar uma suspensão?
A menina queria muito era
estar em outro planeta. Não ouvia mais nada, não respondia a mais nada. Ela só
desejava que o mundo ficasse quieto e imóvel. Mesmo sabendo que as coisas ali
iam ficar feias, Eugênia se via incapaz de fazer os poucos movimentos que a
livrariam de uma encrenca maior- levantar-se do chão, empurrar o trinco e sair
de fininho. Tudo o que conseguia era se enterrar mais e mais naquela situação
horrível e desejar do fundo do seu coração que a deixassem em paz.
Gisela não estava a fim de
gastar saliva com aquele disparate. Não pretendia atrasar-se para a reunião,
planejava ainda tomar um cafezinho antes dela, ou seja, sob todos os aspectos,
não tinha tempo para perder com aquela menina teimosa. A solução era clara: o
Beto da manutenção.
- Seu Beto! Corre aqui!
Seu Beto acompanhava a
história desde o começo com certo interesse. Já tinha visto de tudo naquela
escola, menina trancada no banheiro era o de menos. No Ensino Médio, aparecia
todo dia alguém chorando por conta de namoro, de briga com a mãe, de prova de
matemática. Seu Beto era muito observador e, para falar a verdade, gostava do
jeito quieto de Eugênia.
-Pois não, dona Gisela.
-Eu já tentei de tudo, olha
não posso mais, viu? Força o trinco e tira logo a menina daí.
Sem discutir, Seu Beto se
jogou com toda a força contra a portinha, colocando o ombro na frente como nos
filmes de ação. Decididamente não precisava ter feito tanto esforço – o trinco
era uma coisinha de nada e quebrou com o primeiro impacto. Resultado: o sujeito
de dois metros quase caiu com a porta e tudo sobre uma menininha escolhida,
pálida e aterrorizada. Um avião fazendo pouso forçado sobre uma cabana de
palitos de sorvete não teria impacto maior – Eugênia, pela primeira vez na
vida, abriu o berreiro, de soluçar.
Gisela estava com mau humor
dos diabos. Além de perder o encontro com o professor de ciências, foi obrigada
a ter uma reunião de emergência com os pais da menina. Duas palavras,
emergência e pais, que, combinadas, eram receita certa para o desastre.
O quadro era lamentável – a
menina chorava cachoeiras de lágrimas, embora em geral fosse quieta como uma
múmia. Às vezes, as crianças podiam ser mesmo um mistério. Os pais de Eugênia,
então, demonstravam estar pior que a menina, se é que era possível. Traziam um
olhar confuso, pasmo, misturado com preocupação profunda, tradução visual
perfeita para a frase “O que será que eu fiz de errado meu Deus?”.
- Dona Gisela, eu não estou
entendendo. – A mãe parecia perplexa. – Por que Eugênia se trancou no banheiro?
Deve haver alguma razão, nossa filha não faz nada por impulso.
- Bem, alguma razão deve
haver, mas ela se recusa terminantemente a nos dizer qual.
- Filhinha, você não quer
explicar o que aconteceu para todos nós?
Eugênia só fazia chorar e
tremer, descontroladamente, mas tentou articular uma resposta:
- EuqueriaquietamasaDanielagritoueaportacaiuemcimademiiiiim!!
Como a resposta não foi
compreendida por nenhum dos adultos presentes, estes fizeram um “a-han” só para
constar e voltaram a conversar como se Eugênia não estivesse lá.
Gisela, em tom mais grave,
enquanto remexia em uma gaveta de papéis em busca de alguns cartões, disse:
- Se eu fosse vocês,
procuraria ajuda especializada. Tenho algumas indicações, todas de confiança.
Os pais de Eugênia escutavam
atônitos a diretora.
- Mas não posso deixar essa
atitude passar impune. Eugênia vai ficar suspensa por dois dias. Eu sei que
esse período vai somar aos dias que ela perdeu por estar doente na semana
passada, mas acho importante ensinar a noção de consequência para as crianças
e...
Gisela não conseguiu acabar a
frase, interrompida pela exclamação de surpresa dos dois:
- Doente!? Como assim?
CAPÍTULO 4
Os vinte minutos de volta para
casa foram os mais longos e incômodos de vida de Eugênia. O silêncio no carro
parecia ruim. Mas tudo ficou muito pior quando começou a bronca de sua mãe. Um
dia verdadeiramente repugnante.
A
menina entrou no quarto e fechou a porta. Estava sem sobremesa e sem internet
por uma semana, de castigo. Furiosa, não conseguia entender como aquilo havia
acontecido – ela só tentara evitar problemas, mas agora estava mais encrencada
do que nunca.
Foi
direto se queixar a Isaac. Apertou seu botão de ligar com tanta força que quase
o quebrou. Seus olhos de LED se acenderam, piscando com simpatia. Os próprios
olhos de Eugênia pareciam brilhar de volta, só que com raiva.
-
Isaac, eu não entendo os outros seres humanos. Não mesmo. Eles gritam quando o
que mais querem é ficar em silêncio. Ou fecham a boca, sorriem e controlam seus
mínimos movimentos, quando no fundo queriam estar sapateando de raiva. Eu nunca
fui assim, Isaac, até esta manhã. Hoje, agi exatamente como o resto do mundo,
chorei, fiquei paralisada na hora de fazer um simples movimento e ... Quer
saber de uma coisa? Nunca me senti tão excluída e injustiçada.
-Eu
entendo você, Eugênia. - A vozinha mecânica de Isaac era estranhamente
reconfortante, como o som de uma caixinha de música antiga. – Você nunca vai se
sentir excluída na minha companhia, ou na de Zero e Aldo. Essa possibilidade
não existe em nossos comandos, opção inválida.
-Eu
sei, vocês três são meus melhores amigos.
Mesmo
Zero e Aldo, em geral mais distantes, sentaram-se ao lado de Eugênia, girando
suas rodinhas de modo a fazer cócegas na sola dos pés descalços da menina. Ela
riu.
-
O problema são as pessoas. Elas parecem robôs com defeito. E provavelmente vão
acabar me transformando na mesma coisa, a julgar pelo meu comportamento hoje.
Preciso dar um jeito nisso. E se ...
Os
quatro se entreolharam, cúmplices. Já sabiam o que fazer.
Eugênia
queria aproveitar o tempo de detenção ao máximo. Se tudo desse certo, não teria
mais de ouvir bronca, ficar de castigo, ir à escola, comer pimentão, ser
obrigada a conversar na hora do jantar ou qualquer chateação possível. Ela
estava confiante: com três cérebros a mais, quatro pares de mãos e uma
infinidade de ferramentas disponíveis (Aldo podia ser meio chato, mas Eugênia o
havia equipado com mais apetrechos do que um canivete suíço), ela calculava que
o sucesso era possível. Entendia o tamanho da empreitada, fenomenalmente
gigantesca, mas a possibilidade de resolver sua vida inteira em apenas dois
dias valeria o esforço. Que bom que robôs não precisavam dormir nem descansar!
Outra
coisa boa: os pais provavelmente ligariam seu sumiço ao castigo e não notariam
nada de estranho na sua reclusão. Criança de castigo tinha de ficar trancada no
quarto, pelo que ela sabia. Era só caprichar na cara de tristeza e na proteção
acústica que ninguém descobriria o que estava acontecendo. Talvez até ensaiasse
algumas lágrimas de mentirinha, para quando passasse pela sala ou pela cozinha.
Na
verdade, se qualquer adulto do mundo abrisse a porta do quarto de Eugênia
naquele momento, morreria do coração. Digo adultos porque acho que, se uma
criança de dois anos visse um dinossauro pela janela, não sei se daria muita
atenção, já que nessa idade qualquer cachorro vira-lata parece tão fantástico
quanto um alienígena. Mas, de todo modo, dentro daquele apartamento situado em
um bairro qualquer, de uma cidade mais qualquer ainda, um cenário digno de
filme de ficção científica de Hollywood estava sendo construído.
Placas
de metal revestiam as paredes, cobertas de botões, fios e parafernálias
eletrônicas de todo tipo. Uma tela enorme de altíssima resolução cobria o teto,
emitindo luzes azul-esverdeadas de tempos em tempos. Os robozinhos corriam de
um lado para o outro, parecendo formigas, carregando o triplo de seu peso por
cima de suas cabeças.
No
centro da confusão, estava Eugênia, dando ordens para Zero, Aldo e Isaac como
se fosse um general. Sentada em sua cadeira roxa de escritório, girava em todos
os sentidos, supervisionando a construção.
-Isaac,
reforce a parte elétrica à esquerda! Zero, cheque o funcionamento do
identificador principal! Aldo, traga o iogurte de morango que guardei ontem à
noite!
Ela
esfregava as mãos, contente, e sorria para si mesma. Aquilo estava ficando
magnífico.
CAPÍTULO 5
Era
uma manhã tranquila e agradável. A diretora, a alguns quilômetros dali, abria
sua barra de chocolate matinal e lia o caderno de esportes. O Palmeiras tinha
perdido de novo. Resolveu abrir uma segunda barra, desta vez com recheio de
caramelo.
Os
pais de Eugênia, por sua vez, estavam na cozinha, colocando a mesa de qualquer
jeito enquanto esperavam a água do café ferver. Ainda estavam com sono, nenhum
dos dois tinha dormido bem. Conversavam sobre quem contaria à filha que ela
iria a um psicólogo naquela tarde.
Só
Eugênia, no entanto, sabia o quão diferente seria aquele dia de todos os que já
vivido em seus onze anos. Para fazer justiça ao seu feito, mesmo que vivesse
mais noventa anos, dificilmente passaria por algo assim novamente. O fato de
ter consciência disso só aumentava a pressão do que estava prestes a fazer.
Ela
pensou em como alguns movimentos, mesmo que aparentemente fácies, eram na
verdade os mais difíceis de executar. Naquele momento, lembrou-se da cabine do
banheiro. Isso a fez decidir de vez – suas mãos não tremiam mais, e foi com
segurança que seu dedinho aterrissou no maior botão da cabine de controle da gigantesca
máquina instalada em seu quarto nos últimos dois dias. Um eco surdo ressoou
pelo apartamento.
A
população da cidade começou a se sentir meio esquisita. A princípio, uma
tontura seguida de formigamento na ponta dos dedos se espalhou como uma epidemia.
Depois, uma sensação de sonolência gostosa, como um cobertor de lã envolvendo a
cidade inteira. Assombrosamente, cada fio de cabelo de cada ser humano em um
raio de quilômetros ganhava um brilho prateado, metálico. Em toda parte, o que
se via era pele se transformando em alumínio, veias em fios de metal, olhos em
telas sensíveis, braços e pernas em tubos articulados com rodinhas.
Eugênia
assistia a tudo em transmissão direta e ao vivo da sua tela no teto do quarto.
Sentada na cadeira reclinável, olhava para cima, de vez em quando pegando uma
porção de pipocas do balde pousado no colo e mastigando algumas de cada vez,
crunch-crunch, balançando as pernas com alegria e agitação.
Identificava
os pontinhos azuis que indicavam seres humanos no visor e, como quem joga
videogame, clicava sobre eles, transformando-os em pontos vermelhos. A cor se
espalhava depressa pela tela, a perfeita representação do sonho de Eugênia se
tornando realidade: em menos de dez minutos, todos os seres humanos da cidade
teriam se transformado em robôs.
CAPÍTULO 6
A
simplicidade da solução espantava Eugênia. Como ela não havia pensando naquilo
antes? Claro, não tinha sido fácil atingir seu objetivo, mas a ideia era
brilhantemente óbvia. Um exercício de lógica que até a Daniela, que não era das
crianças mais espertas, conseguiria seguir: ela, Eugênia, era um desastre
quando se relacionava com pessoas. Porém, ela se comunicava perfeitamente com
Zero, Aldo e Isaac.
E
se uma pequena transformação acontecesse? Com sorte, se seu experimento desse
certo, ampliaria o raio de ação do aparelho robotizador. Seria o fim das
guerras, da fome, do aquecimento global (seus robozinhos funcionavam com
energia solar) da extinção das baleias-azuis, da violência. Sem contar, é
claro, o fim dos castigos, das bolinhas de cuspe no cabelo e das broncas dos
professores.
Como
pessoa prevenida que era, Eugênia tinha programado seus humanos-robôs com as
famosas três leia da robótica criadas pelo seu autor preferido de ficção
científica, Isaac Asimov:
1-
um robô não pode fazer mal a um ser humano nem
permitir que algum mal lhe aconteça;
2-
um robô deve obedecer às ordens dos seres
humanos, exceto quando estas contrariem a primeira lei;
3-
um robô deve proteger a si mesmo, desde que com
isso não contrarie as duas primeiras leis.
Sendo o único ser
humano nas proximidades, ela sabia que estava muito mais segura com aquela
população de robôs do que jamais antes estivera em sua existência.
Depois desse pensamento
encorajador, Eugênia resolveu espiar como o robô-Pai e a robô-Mãe estavam se
comportando. Ainda de pijamas, saiu de pé ante pé do quarto. Meio ressabiada,
colocou o nariz na frestinha da porta da copa. O cheiro a nocauteou: o aroma
irresistível de bolo de chocolate, macio e quente, anunciava que algo de
diferente estava acontecendo na cozinha.
Em seguida, a nuvem
intoxicante de cacau e açúcar deu lugar a um cheiro mais sutil – pão
torradinho, queijo ... Eugênia não conseguiu mais resistir e escancarou a porta
com um só gesto, mal acreditando no que via: de algum modo, ainda era o seu
café da manhã de sempre, mas como se alguma fada madrinha o tivesse
transformado na Cinderela dos cafés da manhã: uma montanha de pequenos triângulos perfeitamente
empilhados, sanduíches montados com capricho e simplicidade: o pão crocante e
dourado abraçando o queijo cremoso e duas fatia de peito de peru salgadinhas e deliciosamente defumadas. Textura perfeita
entre o sólido e o cremoso.
O suco de laranja, no
entanto, fez Eugênia lacrimejar. Estava morrendo de sede. Pegou um copinho de
vidro na mesa e deu um gole grande, bebendo metade do conteúdo de uma vez. Sem
um gominho sequer, mas com sabor de fruta de verdade em vez de gosto de
remédio, era com certeza o melhor líquido que já havia bebido. Segurando a
jarra e a bandeja de sanduíches estavam sorridentes robôs Pai e Mãe, olhando
para ela com toda a ternura que dois olhos mecânicos conseguiam expressar.
Depois que a menina se sentou para comer, dissera ao mesmo tempo, quase
cantando:
- Eugênia, quando você
terminar seu café e quiser ir à escola, é só nos avisar!
O tom de voz das
máquinas era animado e um pouco estridente, como uma gravação antiga. Eugênia
estava louca para saber o que tinha acontecido com a escola depois da ação do
robotizador. Engoliu depressa o resto do terceiro sanduíche e colocou num
piscar de olhos os seus tênis de cano médio, bem amarrados. Decidiu ficar de
pijama mesmo. Os robôs não iam ligar. Pegou a mochila, cortou uma fatia do bolo
de chocolate recém-assado, com a cobertura escorrendo pelas bordas, e o colocou
em um pote de plástico. Encheu a garrafinha portátil com o que tinha sobrado do
suco, gritando:
-Zero, Aldo, Isaac!
Vamos para a escooola!
Entraram no carro, os
quatro, acomodando-se no banco de trás. A mãe dirigia cantando a música
preferida da filha, “Yellow Submarine”, dos Beatles. Soava exatamente a versão
original, de 1996, com trompetes e tudo mais. A menina e os robôs se juntaram a
ela, fazendo coro.
Nas ruas, todos os
vizinhos, transformados em androides, dançavam uma coreografia sincronizada.
Velhinhos, bebês, crianças e adultos de todas as formas e idades davam piruetas
e executavam passos de jazz ao som da música: We all live in a yellow submarine, yellow submarine, yellow submarine!
O asfalto refletia a
luz do sol, cintilando, como se acompanhasse a felicidade da nova população.
CAPÍTULO 7
A
escola, do lado de fora, parecia a mesma de sempre. A cena arrepiou todos os
pelinhos do braço e da nuca de Eugênia. Cerca verde de metal, portaria, paredes
pintadas de amarelo-claro. Uma visão que causava embrulhos no estômago de
Eugênia toda manhã desde os seus seis anos de idade: ela esperava que fosse
diferente daquela vez. A robô-mãe buzinou alegremente, despedindo-se enquanto a
menina parava, sozinha, na frente do portão principal.
Eugênia
já se preparava para dar meia-volta em direção à sua casa quando subitamente um
pequeno batalhão de robôs apareceu, carregando faixas e tambores como em um
desfile. Vendo a cara de espanto da menina, diminuíram o ritmo, mudando o tom
da música: de enredo de escola de samba, passaram a marchinha de carnaval de
rua, e Eugênia não precisou pronunciar uma palavra sequer. Preferiu assim.
O
desfile era comandado pela diretora Gisela, à frente de todas as crianças, dos
funcionários e professores da escola, agora bem melhores em suas versões
robóticas.
A
banda de robôs, que davam boas-vindas à sua criadora, só parou de tocar seus
instrumentos quando o sinal da escola soou. Eugênia já sabia que as aulas
daquela segunda-feira seriam muito diferentes das marcadas e seu calendário
escolar. Nada de locução adverbial e divisão com números fracionados. Esse último conteúdo Eugênia
tinha aprendido aos dois anos, sozinha, sem ninguém precisar explicar com
feijõezinhos ou a “regra de passar o número para cima”.
As
mudanças eram muito bem-vindas: pela manhã aulas de cálculo avançado, história
canina e lendas absolutamente assustadoras de países asiáticos. À tarde,
campeonato de videogame e montagem de nave espacial, com direito a pausa ata um
chocolate quente preparado pelos robôs-cefs da cantina.
Voltar
para casa também era bom: toda noite os pais robôs a levavam para fazer algum
programa especial. Em uma noite qualquer, depois de um jantar maravilhoso,
pediram que Eugênia vestisse sua melhor roupa. Ela escolheu um vestido roxo
estampado com silhuetas de cachorrinhos basset, uma meia-calça laranja e sapatos-boneca
verde-limão. Saindo do quarto, percebeu que seus pais tinham um revestimento
metálico com a mesma combinação de cores. Disseram a Eugênia que veriam um
concerto no Teatro Municipal.
A
menina ficou levemente desapontada. Não que não gostasse de música clássica,
ela até gostava bastante, especialmente das óperas com histórias interessantes:
o problema é que já tinha ido ao Municipal algumas vezes com a escola ou com o
pai(que, aliás, não podia ver uma orquestra sem gritar “Bravo!”).Depois de visitar o zoológico para dar um passeio de
zebra, a fábrica de doces pra criar um saquinho de balas só com seus sabores
preferidos e de passear de avião sobrevoando a cidade, um simples concerto perdia toda a graça.
Chegando
ao teatro, Eugênia já podia perceber que a coisa seria um pouco diferente do
rotineiro toque de trombeta, do cafezinho para os adultos e de sentar-se
quietinha lembrando-se de não tossir nem espirrar muito alto. Para começar,
todos os robôs emitiam luzes florescentes, como aqueles peixes abissais que
tinha visto na TV. Na meia-luz do teatro, o efeito era lindo – parecia a cidade
em dezembro, na semana do natal, com luzes brilhantes e um sentimento de
felicidade inexplicável no ar.
As
escadarias e colunas pareciam saídas da casa de uma fada ou princesa. O mármore
cor-de-rosa suave reluzia como uma pérola do interior de uma concha. Quando viu
os tapetes, grossos e peludos, Eugênia não resistiu: tirou os sapatos e as
meias para sentir a textura macia e quente do tecido envolvendo seus pés gelados.
Havia
no ar um perfume maravilhoso que fazia a menina se lembrar de todas as coisas
boas do mundo – papel couro e tinta – que a levavam direto a uma biblioteca
cheia de livros raros e maravilhosos. Caramelo queimado, baunilha e chocolate,
a melhor doceira que poderia existir. Grama cortada, flores silvestres e casca
de árvores, uma casa de campo ensolarada e acolhedora.
Tudo,
desde o chão perfeitamente quadriculado às cortinas que repetiam a estampa de
cachorros de seu vestido, parecia feito sob medida para agradá-la. Os robôs, ao
passarem por ela, acenavam e sorriam, piscavam e faziam dancinhas de puro
contentamento. Estava na hora de o show começar.
Um
robô especialmente simpático a conduziu para dentro do salão. Em vez de
sentar-se em um assento qualquer entre as centenas de lugres disponíveis,
Eugênia foi instruída a ficar no cento, onde ficava a orquestra, em um trono
azul metálico estampado com estrelinhas e duas almofadas gigantes.
Uma
vez confortavelmente instalada, começou a ver os robôs entrando pela porta
principal, um a um, ocupando as poltronas da plateia. Todos carregavam
instrumentos – alguns a menina conhecia de nome, outros nunca tinha visto na
vida.
Ela
prendeu a respiração: a plateia era só ela, no centro da maior orquestra que já
tinha visto na vida. Os robôs pareciam concentrados, mal piscando suas
luzinhas. O silêncio na sala indicava que começariam a qualquer minuto.
A descrição exta do que aconteceu a seguir não cabe
dentro de um livro curto como este. Só posso dizer que a música preencheu cada
canto do salão, transportando Eugênia a um lugar mágico. O que exatamente foi
tocado ela não saberia repetir, mas fora, sem sombra de dúvida, a melhor
experiência de sua vida. Quando voltou para casa, ainda sob o efeito estonteante
da música e das luzes, pousou a cabeça sobre o travesseiro, tentando em vão se
manter acordada para prolongar ao máximo aquele dia perfeito. Enfim desistiu
quando se lembrou de que a manhã lhe traria outras 24 horas de felicidade tão
maravilhosas como aquelas que haviam terminado.
CAPÍTULO
8
Os dias seguiam na mais
perfeita paz. Eugênia ia aproveitando cada momento, do começo ao fim. Até que
certa manhã aconteceu o que você, leitor inteligente, já previa: Eugênia
acordou com uma sensação diferente dentro de si. Ela demorou um pouco para
descobrir o que estava acontecendo. Era tão ruim em identificar o que sentia
quanto e entender os sentimentos das outras pessoas. Esfregou os olhos,
sentou-se na cama e perguntou a si mesma se estava com sono. Não, não era sono.
Cansada, talvez? Hum, nem um pouco. Triste? Ainda não era isso. Será possível
que estivesse ... entediada?
Mas como? Quem em plena posse de suas faculdades mentais
ficaria entediada num mundo em que um bando de robôs encenava uma luta entre um
super-herói japonês e o Godzila só pra ela? Em que cada mínimo detalhe do dia
era planejado para satisfazer suas vontades? Disse a si mesma que estava
ficando doida. Talvez devesse se transformar em robô de uma vez: aquele
comportamento humano, honestamente, podia ser muito irritante!
Tentou afastar os pensamentos perturbadores para longe de
si. Foi até seu quarto/cabine de comando e tirou do guarda-roupa uma pequena
caixa empoeirada. Sentada no chão, de pernas cruzadas, foi retirando de dentro
dela materiais de desenho simples, mas bem-conservados: lápis de cor, um
caderno de folhas grossas, canetinhas. Rabiscou a primeira coisa que lhe veio à
cabeça, sua família, e chegou à conclusão de que havia ficado bom. A cabeça de
seus pais saiu um pouco fora de proporção, e as mãos estavam estranhas, mas a
semelhança era inegável. Desenhar tinha sido eficiente para espantar o tédio,
mas agora ela sentia uma pontinha de tristeza ao ver as figuras retratadas no
caderno.
Correu para mostrar o desenho para o pai e a mãe robôs:
ambos começaram imediatamente a cantar as maravilhas daquela obra-prima, mas,
pela primeira vez, Eugênia não se sentiu à vontade com aquelas palavras.
Lembrou-se do sorriso do pai ao assinar a sua prova de matemática daquele
semestre, antes de o aparelho robotizador entrar em ação. Aquela expressão ela
tinha conseguido entender: impossível não ver orgulho e satisfação estampados
em todas as linhas do seu rosto, até alguém desligada como ela via isso
claramente. No entanto, ele não precisara cantar esses sentimentos em um palco
iluminado: foi justamente o fato de ela ter sido capaz de perceber isso sozinha
que fez daquele momento uma memória tão importante.
Foi para a rua, caminhando com a cabeça baixa e passos
pesados, o desenho ainda nas mãos. Olhando ao redor, tudo o que conseguia
enxergar eram engrenagens, antenas, parafusos. Nada além de metal. Eugênia
olhou para as próprias mãos, para os cantinhos machucados de suas unhas, a pele
mais solta volta dos dedos. Percebeu que ela ainda era diferente de toso e que,
graças ao aparelho robotizador, essa diferença agora era tão gritante quanto a
que existia entre um peixinho dourado e um rinoceronte. O pensamento aumentou o
nó em sua garganta.
Dirigiu a atenção novamente para a folha de papel com o
desenho de sua família. Outra lembrança veio à sua memória: desta vez, era a
mãe, guardando um rabisco que ela havia feito em um post-it amarelo dentro da
carteira. Curiosa, ela queria saber o porquê daquele gesto estranho. A resposta
a deixava contente: “Ah, filhinha, não quero que acabe jogado fora na faxina,
está tão lindo...”
Outra coisa estranhíssima: ela podia jurar que estava
enjoada de sanduíche de peito de peru. Mas se fosse para comer o bendito,
preferia até aquele queimado nas pontinhas e no meio que a mãe fazia, mesmo que
uma metade fosse sempre diferente da outra ...Estranheza das estranhezas, ela
achava que já nem gostava tanto assim de bolo de chocolate.
Pensou em Zero, Aldo e Isaac, que naqueles dias tinham
formado, com ela, um quarteto inseparável. Talvez Eugênia pudesse ficar com os
três, e ela os ligaria só de vez em quando, naqueles dias em que a presença de
um amigo-robô fosse imprescindível.
Dobrou o desenho com cuidado e o colocou no bolsa da
calça jeans. Era hora de desfazer aquela bagunça: ela aprenderia a lidar com as
Danielas desse mundo, de uma maneira ou de outra.
Eugênia voltou conformada para casa. Entrou suspirando na
câmara do aparelho robotizador com o kit de ferramentas na mão e começou a
trabalhar: uma a uma, inverteu as ligações, programas e as engrenagens.
Seus ajudantes, Zero, Aldo e Isaac, obedeciam aos seus
comandos como sempre, carregando as muitas ferramentas, virando as páginas de
seu livro de engenharia elétrica e aceitando as ordens de sua criadora. Entretanto,
estavam estranhamento quietos. Se robôs podem ser expressivos, diria que
aqueles três estavam com cara de preocupação.
Aldo, principalmente, parecia muito azedo: de vez em
quando, até ousava soltar fumacinha de suas orelhas de robô, mas Isaac lhe dava
um choque quando via o ato de rebeldia, balançando a cabeça com ar de
reprovação.
Eugênia achou melhor não envolver o resto da população de
robôs na missão: bem ou mal, eles continuavam vivendo nas mesmas casas e
executando mais ou menos as mesmas funções que ocupavam quando humanos. Assim
que o raio da máquina fosse neutralizado, seria como se acordassem de um longo
sonho, como na história da Bela Adormecida. Nunca perceberiam nada de errado, e
a vida correria como antes.
Tudo pronto. A menina se preparou mentalmente, dando
adeus à perfeição da vida com os robôs. Sabia que mão ganharia mais doces finos
todo dia ou concertos só para ela, mas aquela coceirinha em seu coração havia
começado como tédio estava virando um buraco negro de saudade: aqueles não eram
seus pais, e ela não podia mais ficar sem eles, ainda que fossem as pessoas
mais complicadas do mundo.
Com uma postura solene, apertou o botão vermelho e
esperou pelo som surdo que deveria ser ouvido a qualquer instante.
CAPÍTULO
9
Estranhamento, tudo
continuou tão silencioso quanto em qualquer outro dia vivido com os robôs.
Eugênia saiu correndo em direção à sala ou à cozinha para abraçar seus pais
quando se deparou ... com dois seres eletrônicos, acendendo e apagando luzinhas
com um sorriso metálico no rosto. O pai e a mãe ainda em versão robótica.
Eugênia não podia acreditar. Saiu em disparada para o
quarto, com falta de ar e os olhos arregalados, trancou a porta e correu até o
painel de controle do robotizador. Começou a pressionar freneticamente todos os
comandos de desligar, mas nada parecia funcionar: nos visores do teto, as luzes
não mudavam de cor; os robôs continuavam tão robôs quanto antes.
O
desespero assolou a menina. Ela precisava fazer uma última tentativa de
reverter o estrago. Agarrou uma marreta tão pesada quanto ela e
desajeitadamente levantou aquela ferramenta monstruosa acima dos ombros.
Começou a atingir a máquina com golpes violentos e estabanados.
A ação
teve resultado, mas não o esperado: uma explosão gigantesca arrasou a cidade de
ponta a ponta. Pela janela, ela via os robôs parando de funcionar, um após o
outro, caindo no chão como panelas velhas. O som do metal se chocando com o
solo atingia os ouvidos de Eugênia como se fosse o som de metralhadores em um
campo de batalha. Horrorizada, ela não conseguia se mover nem desviar os olhos
do desastre absoluto que se desenrolava diante de si. De repente, a cidade
havia se transformado em um ferro-velho, e tudo por sua culpa.
Eugênia
sentou-se no chão, arrasada. Zero, Aldo e Isaac se aproximaram, meio sem jeito.
Isaac colocou a mão mecânica o ombro da criadora. Aos prantos, ela culpava os
três:
- Por
que não me avisaram que isso iria acontecer? Aldo, você sabia o tempo todo?
- Sim.
A estrutura humana é muito complexa. Não suportaria mudar de forma pela segunda
vez, o princípio não funciona assim. Transformar máquinas em carne e osso é
impossível. A senhorita devia ter previsto.
- E
por que você não me impediu? Nenhum de vocês?
Desta
vez, foi Isaac quem tomou a palavra:
-Eu só
ajo como você gostaria que eu agisse, Eugênia. Está no programa. Eu impedi o
Aldo de lhe contar porque você ficaria muito chateada com as informações.
-Você
mentiu pra mim? Também está no programa? É impossível! Você não pode mentir!
-Negativo.
Em nenhum momento transmiti palavras falsas ou inventei fatos inexistentes.
Lamento muito. Segui seu código, criadora.
Zero
só acendia e apagava suas luzinhas procurando um buraco qualquer para se
esconder, desconfortável com todas aquelas emoções.
O Sol
estava se pondo. Os robôs, agora pouco mais que bonecos sem vida, refletiam
aquela estranha luz alaranjada que atingia o céu, projetando sombras estranhas
nas ruas desertas. Logo anoiteceria. O pensamento aterrorizou Eugênia: a menina
tão racional, não conseguia sentir nada além de pânico ao pensar que ficaria
sozinha, no escuro, em uma cidade-fantasma.
No
entanto, não conseguia olhar para seus três robôs sem raiva ou tristeza
profunda. Pediu aos três que se retirassem e deitou-se na cama, olhando
fixamente para o teto, agora sem luzes piscando, enquanto sua cabeça se enchia
de pensamentos ruins.
Estava
quase caindo no sono, esgotada pelo cansaço, quando viu algo que a despertou
completamente. Ela deu um salto na cama; aquilo no monitor quebrado era uma luz
indicando presença humana?
Eugênia
levantou-se de imediato, analisando o monitor mais de perto. A tal luzinha azul
estava nas proximidades de sua casa. Quem ou o que poderia ser? Seu coração
batia como se fosse sair pela boca, ela suava frio, mas era uma menina corajosa
e sabia que precisava tirar história a limpo. A situação estava tão ruim que
não poderia piorar.
Calçou
os chinelos, pegou uma lanterna e saiu na rua deserta. Segurando-a com as duas
mãos, falou:
-Quem
está aí?
Era
para a frase ter soado alta e destemida.
Acabou
saindo um fiapo de voz choroso e fraquinho. Mesmo assim, ela recebeu uma
resposta.
-Eugênia?
A
menina, por instinto, apontou a luz na direção daquela voz estranhamente
familiar. O feixe iluminou um rosto risonho que ela conhecia bem: seu Beto da
manutenção?!
O
faz-tudo da escola estava usando seu uniforme de sempre, um macacão azul quase
fosforescente. Com as mãos na cintura e um sorriso n rosto, ele encarava a
menina com bom humor e curiosidade.
Sentaram-se
os dois no meio-fio da calçada. Seu Beto tirou uma garrafa térmica da mochila e
ofereceu a Eugênia. Era chá de capim-cidreira. A menina estava tão confusa com
a presença dele que não conseguia fazer nenhuma das milhões de perguntas que
passava pela sua cabeça: por que ele não tinha virado robô? O que estava
fazendo ali? E por que parecia tão calmo em uma cidade cheia de robôs
quebrados, no meio da noite, com uma menina de onde anos? Sua cabeça girava,
sem parar.
-Tá
nervosa, menina? Chá de capim-cidreira é bom para isso. Toma outro golinho.
-Como
... Você não está nervoso? Olha só pra cidade! É tudo culpa minha!
-Ah,
bom, essas coisas às vezes acontecem mesmo, né. Mas uma hora tudo passa, pode
deixar.
-Seu
Beto, não passa não, eu já tentei de todo jeito que podia! Não posso fazer nada
mesmo!
-Bem,
se não dá pra fazer nada agora, o jeito é esperar. Mais um pouco de chá? Ainda
está morno, ó.
Eugênia
aceitou. Ficaram os dois em silêncio, ouvindo o som do vento e outros
barulhinhos noturno: grilos, um cachorro vira-lata uivando para a Lua. A menina
tirou do bolso o seu desenho e apontou as duas figuras no meio da folha,
mostrando-as para seu Beto.
-Olha,
esses são meu pai e minha mãe. Eu os transformei em robôs porque eles não
gostavam de mim e eu não conseguia entender nenhum dos dois, mas agora queira
não ter feito isso.
-Bem,
mas não era verdade, era?
-Como
assim?
-Tenho
certeza que eles gostavam de você, menina. E que você conseguia entender os
dois perfeitamente bem.
-Não,
tudo o que eles faziam era sem sentido! Por exemplo, minha mãe: às vezes ela
dizia que brigava comigo porque esse era o jeito dela de mostrar que estava
preocupada. E meu pai, que quando queria muito gritar comigo, preferia ficar
quieto. São as pessoas mais difíceis de entender que já conheci!
-Parece
confuso mesmo. Mas no fundo, no fundo, você não sentia que eles estavam falando
a verdade?
-Acho
que sim. Acho que você tem razão. Eu não sabia que entendia, só isso.
- E se
você conseguia entenderas pessoas que você considera as mais complicadas que já
conheceu ... Acho que podia dar um jeito de se virar com o resto do mundo, não
é?
-É. Ou
era, não sei. Agora é tarde demais.
-Será?
Por que não dorme um pouco? Os problemas às vezes diminuem sob os primeiros
raios de luz da manhã. Alguns até desaparecem de vez: parece que têm medo do
Sol ...
Eugênia
não conseguiu encontrar forças para lutar contra aquele argumento. Estava tão
cansada que já não sabia mais se estava sonhando ou acordada: tudo parecia
muito distante, coberto por uma névoa branca ... Apoiou a cabeça em uma árvore
da calçada e pegou no sono quase de imediato.
Enquanto
Eugênia dormia, algo muito estranho começou a acontecer. Em sua casa, na
cozinha, o pai e a mãe robôs iniciaram uma mudança inédita: primeiro, a
cobertura metálica foi lentamente se transformando em tecido humano. Logo
estavam revestidos de pele, quente e macia. Fios de cabelo voltaram a crescer
onde antes só havia cobre. Órgãos internos substituíam engrenagens, mãos e pés
no lugar de rodinhas.
Eles
foram os primeiros, mas em mens de uma hora, toda a população de robôs começou
a apresentar sinais humanos, aquilo se espalhava como gripe no inverno. Os
efeitos do robotizador tinham sumido, tudo num passe de mágica. Se isso
aconteceu porque a ação do aparelho era temporária ou conta da conversa entre
Eugênia e seu Beto, eu não sei dizer: o importante é que, como como ele havia
previsto, o problema de Eugênia sumiu assim que os primeiros raios de Sol
tocaram a cidade.
CAPÍTULO
10
Eugênia abriu os olhos,
ainda sonolenta. Por alguns minutos, esqueceu-se de tudo que havia acontecido
na noite passada. Estava esperando ser acordada por uma orquestra de robôs
dançantes ou algo do gênero, mas foi só olhar ao redor para que a lembrança da
destruição do robotizador voltasse à memória: o quarto estava uma bagunça, com
engenhocas quebradas por todos os lados, telas espatifadas, fios soltos ...
Foi
até a cozinha pegar um copo de leite e alguma fruta na geladeira: apesar de
chateada, estava morrendo de fome. Quando fechou a porta, tomou um susto tão
grande que derrubou o copo no chão.
-Eugênia,
eu sei que você ainda está brava comigo, mas espero pelo menos que me dê um bom
dia!
Se o
espírito de Leonardo da Vinci tivesse encarnado naquele exato momento no cômodo,
a menina não teria ficado tão surpresa: quem estava parada, batendo o pé no
chão de pijamas e com uma gigantesca cara de mau humor era a sua mãe em carne e
osso! Ela esqueceu como ficava constrangida com demonstrações de afeto e, ainda
segurando uma mexerica, jogou-se com tudo no colo da mãe.
A
surpresa de Eugênia não era nada comparada à da mãe – a mulher literalmente
caiu para trás, parte por conta do peso da filha, parte porque esperava um
abraço daquele desde que a menina era um tiquinho de gente e não achou que o
receberia tão cedo, principalmente depois de um castigo prolongado! Não
conseguiu segurar as lágrimas, que limpou com as costas da mão, rindo Eugênia
percebeu o gesto.
-Ah,
mãe, você está chorando, mas está contente, não é? Agora acho que entendi!
O pai
abriu a porta, deparando-se com aquela cena estranhíssima na cozinha. Será que
ainda estava dormindo? Tinha tido pesadelos a noite inteira: alguma coisa a ver
com ter sido transformado em um robô ... Não devia ter comido queijo antes de
dormir.
- O
que vocês estão fazendo no chão? Querida, você escorregou?
Os
três começaram gargalhar, sem saber o porquê. Eugênia pensou, naquele momento,
que algumas coisas eram ainda melhores quando aconteciam espontaneamente.
-Ah,
Eugênia, depois de preparar seu sanduíche de peito de peru, vou deixar você na
escola, tudo bem? E você ainda tem que se consultar com aquele psicólogo que a
diretora indicou. É no fim da tarde, mocinha, não se esqueça.
-Tudo
bem. Mas ... Eu não quero mais esse sanduíche por um bom tempo, mãe. E eu
preciso arrumar o meu quarto depois da aula!
CAPÍTULO 11
Eugênia
era rápida: em algumas horas, a antiga câmara de comando parecia o mesmo
quartinho branco de sempre, talvez um pouco menos organizado. Só não conseguiu achar Aldo, Zero e Isaac de
jeito nenhum: onde será que aqueles robôs tinham se metido? Ela deu de ombros,
conformada. Sabia que em algum momento teria de dizer adeus aos três. Mas
achava que teria mais tempo para se despedir ...
Seu
dia na escola não foi perfeito, claro. Mas Eugênia ignorou solenemente as
provocações da Daniela e das outras crianças. Além disso, tinha conseguido
resolver um problema na lousa, na aula de matemática, na frente da classe
inteira! Se ela tinha resolvido o problema usando operações avançadas demais e
ninguém tinha entendido, era problema deles. Uma coisa ela havia aprendido com
os robôs: às vezes, era bom ser especial.
Abriu
um sorriso enorme ao ver a cara de incredulidade da professora folheando o
livro didático de trás para frente, completamente pasma. Depois da aula,
conversaram longamente. A menina deveria passar a frequentar um grupo de
estudos para alunos com habilidades especiais em matemática. Mesmo se Eugênia
de repente envelhecesse dez anos, ainda seria a caçula, mas a possibilidade de
partilhar algo que ela amava de todo o coração com pessoas que também viam os
números como uma espécie de mágica a fez perder um pouco do medo que tinha da
palavra “grupo”.
Outra
coisa importantíssima: ela agora tinha um amigo na escola. O seu Beto, claro! Ela
sabia que podia conversar com ele sobre muitas coisas. Dona Gisela observava de
longe a mudança de comportamento social da menina. No entanto, tinha coisas
mais importantes a fazer, afinal, o Campeonato Brasileiro estava para começar!
Em
casa, chutando uma última engrenagem para baixo da cama, Eugênia respirou fundo
e fechou a porta do quarto um pouco tensa. Passou as mãos no cabelo, ajeitou o
agasalho e deu um passo para fora: estava pronta para visitar o psicólogo.
-Vamos,
filha? Já estamos um pouco atrasadas!
-Mãe,
como ele se chama mesmo?
-Isaac.
Acho que você vai gostar dele, Eugênia, dizem que é tão bom que parece ler os
pensamentos dos pacientes inteligentes e especiais como você!
Eugênia
sorriu, encantada. Tinha um bom pressentimento sobre aquele tal de Isaac.Com
esse nome e meio telepata, ela definitivamente não tinha nada a temer.
JANAÍNA TOKITAKA nasceu em São Paulo,
em 1986.Escritora e ilustradora, Janaína é formada em Artes Plásticas pela
ECA-USP. Autora de outros 11 livros de literatura infanto-juvenil, escritos e
ilustrados por ela, entre eles De noite, na cidade, também publicado
pela Rocco Jovens Leitores. Assinou a ilustração de cerca de 30 obras de
autores nacionais e estrangeiros, como Contos populares japoneses, de
Adriana Lisboa, Poesia é Fogo, é Terra, é Água, é Ar!, de Sandra Lopes,
e O mistério da estrela de Neil Gaiman.
O LIVRO
Eugênia
tem 11 anos e é mais inteligente que Einstein e Da Vinci juntos. Na escola,
Eugênia não tem amigos. Acha muito difícil entender as reações das pessoas e a
forma como se comportam; acha-as incompreensíveis. Eugênia decide, então, construir
amigos robôs, com quem brinca e se diverte muito ...
Mas
Eugênia não para por aí; já que continua não se dando nem com os humanos,
decide tomar uma atitude radical: transformar rodas as pessoas em robôs. Será
que isso vai dar certo?
Ao ler Eugênia e os robôs você viverá a
história de uma menina que se sente diferente e tem dificuldade em se
relacionar com as pessoas. Sente-se sozinha e se comporta de tal forma que não
consegue se aproximar dos colegas, fazer amigos e nem ser aceita, já que também
não aceitos os outros como eles são.
A
história trará a oportunidade de pensar sobre bullying, sobre isolamento, sobre
as questões de relacionamento, sobre aceitar o outro e tentar conviver bem com
o diferente e, ainda sobre as vantagens e desvantagens do uso da tecnologia em
nossas vidas.